Porque tudo é um procurar-te,
Um revolver a terra funda
Da ausência, onde te desvaneces,
Onde deixas de existir.
Porque tudo é um procurar-te,
Até o tempo.
Nuno Rocha Morais
Da chuva e do vento,
Como sílabas furiosas
De uma história de amor.
Cá dentro, tilinta a substância
De copos e risos e uma alegria
Quase compulsiva,
Esta vontade de inventar estrelas,
Perguntam-me por ti,
Incessantemente, em revoadas,
Perguntam-me por ti, perguntam,
Perguntam e eu não sei
E apercebo-me do súbito silêncio
Dentro de mim
Numa noite de Natal.
Nuno Rocha Morais
Chegou não sendo ninguém,
A figura vazia, o peregrino
De nenhuma fé,
Nenhum rasto deixavam
Os seus passos sobre a neve,
As suas mãos não poderiam
Mover sequer uma folha.
Chegou a uma vida
De absoluta indiferença,
O inverno era o mais frio
Em muitos anos.
Dormiu em camas várias
Sonos emprestados;
Olhar apenas sentado
Era a única possibilidade de viver.
Deixou-se cair para render
Homenagem ao abismo,
A maníaca hora das refeições,
Os solitários agarrando-se
Ao seu vazio como única sobrevivência,
Em tudo isto, ninguém.
Nuno Rocha Morais
A casa gorgoleja, estala, range,
Estuda-me com ruídos estranhos
Que me rondam como animais –
Numa reacção física, regougam, rosnam,
Porque aqui o estranho sou eu,
A minha respiração é uma interferência
Na ordem do som e do espaço.
Na noite seguinte, os ruídos cessaram
Ou tornaram-se uma voz familiar,
Uma presença tutelar,
Como o perfume e a respiração
Do sono ao meu lado.
Agora que não falamos a mesma língua,
Passamos o dia inteiro na penumbra
À procura numa cama de uma raiz comum,
De um sinal de encontro, de reunião;
O amor tem tudo de uma investigação filológica,
Excepto as palavras, que enlouquecem ao segundo dia
Como insectos enclausurados,
Para morrerem ao terceiro.
Nuno Rocha Morais (Poemas dos Dias-2022)
Não sei. Não me lembro.
A memória não enreda vultos,
Milénios domados pelo esquecimento,
Histórias anteriores a toda a História.
Mas, por vezes, imagino células do tempo
Que se agrupam em dias
E os dias são a primeira coisa criada,
A primeira resposta ao não haver nada,
Nem sequer o silêncio das existências.
E os dias começam os trabalhos.
Da luz líquida nascem as águas;
Da luz opaca, opressiva, a terra;
Da luz incandescente, o fogo;
Das estradas da luz, o ar;
E os trabalhos vão-se fundindo,
Povoando os dias.
Talvez tenha sido assim. Não sei. Não me lembro.
Existiremos, quando o nosso início
Mais não é do que figuras de sonho?
Nuno Rocha Morais
(Poemas dos dias - 2022)
Este foi o poema de base da apresentação do livro Poemas dos Dias feita por Rui Santiago - "Cosmogonia"
Com todo o saber no teu bolso,
Mas eu gosto mais do mundo assim.
Gosto de dizer que a lua é a rainha do céu
Durante a noite,
E que tem um vestido amarelo
Com nódoas castanhas.
Gosto de dizer que a noite vem
Porque chovem uvas,
Uma imensa chuva de uvas.
Avô, não quero saber
Dos movimentos do sol.
Ou que o sol é um astro.
Não. Ele é o olho arregalado
De Deus, que é um ciclope.
Avô, tu sabes que eu cresci,
Mas eu gosto de ignorar os meus passos,
Fingir-me criança,
Para tornar mais leves
Os anos, que já se vão amontoando
Sobre os meus ombros.
Nuno Rocha Morais (Poemas dos Dias 2022)
Misturam-se os corpos, não se misturam as vidas.
A tensão dos segredos,
A resistência das ânsias
Que, lucífugas, se refugiam
Na superior distância da inexpressividade,
Um autismo urbano.
O corpo a corpo da indiferença,
A força que atrai cada um
Para dentro do seu próprio mundo.
Um homem carregado de embrulhos
Risonhos em cores berrantes;
Uma mulher que espreita a aranha de um relógio;
Cada um enfrenta sozinho a sua vida
Sem descobrir gente dentro dos corpos
Que o rodeiam;
Ninguém olha cada pessoa como merece
Quem olha as pessoas?
Nuno Rocha Morais
Ao princípio, nada disse.
Depois, começou a falar, pausadamente,
E, a sua voz, uma imensidão
Defluía, humilde;
Não mostrou o rosto,
Mas estava em tua casa
E estava em minha casa.
Partiu como veio, sem aviso,
E ficamos um em frente ao outro,
Na minha casa,
A um tempo abismados e cientes
Do amor a que cada dia mais novo em nós.
Nuno Rocha Morais
(Poemas dos Dias - 2022)
Sem mãos e sem lábios,
Em ruas sem nome, portas sem número,
Que o rosto dele dispersou como pó
E é uma impossibilidade;
Ela escondia-o tão bem em si,
A ponto de a carne dele ser uma mentira
Que o corpo não bastava para desmentir.
Agora, atingido este conforto,
Verdade alguma o pode encontrar
E tudo acaba bem, com ela a esquecer
Que alguma vez o escondeu,
E ele mesmo esquecido de si.
Nuno Rocha Morais
De novo do mar,
Numa zanga superada,
E suponho que, agora,
À mesa de uma esplanada,
O teu riso decreta o Verão.
E uma estação arrefece.
Nuno Rocha Morais
Me tinha abandonado.
Não pedi que afastasse de mim o cálice
Porque eu era o próprio cálice.
Depois da sexta crucificação,
O meu corpo era tao insensível
Às suas chuvas como a terra estéril.
Batiam-me, os seus movimentos
Rasgavam-me, mas eu já estava
Fechada, como flor anoitecida,
Muito longe de mim,
Onde não me podiam alcançar.
Eu sabia que eles voltariam
Ainda muitas vezes,
Mas nem o seu ódio me conseguiu engravidar.
Nuno Rocha Morais
À minha paciência chamarás cobardia
Porque, então, o significado é um extremo –
Para além dele só o abismo.
E, assim, todas as palavras em mim
São indefensáveis, apenas me posso calar.
Mas, então, pelo silêncio, acuso
Ou escondo, ou falseio.
Na verdade, o meu silêncio é uma sucessão
De incisões, de histórias fossilizadas.
Não sei de ti, mas desaprendi a perguntar.
As perguntas sobem ou descem?
O céu é a suspensão de uma coisa,
A terra é a consequência ou vestígio de outra.
Paralelos, pacientes, cobardes,
Jamais se infringem, nada farão um pelo outro.
À mais perfeita indiferença ouvi
Chamarem amor. Talvez fosse.
Sentem algas e é amor.
Pontapés nas costas e é.
Acessos de tosse. Náuseas. E é sempre amor.
À minha paciência chamarás cobardia.
Ao amor, gaiola aberta.
Nada restará de mim nas tuas mãos ténues.
Não perdoarás a paciência,
Não me perdoarás que espere por ti.
Nuno Rocha Morais
Hoje fui completo.
Fiz quanto já tinha feito,
Lavei olhares como louça quebrada,
Pisei corações, ordenhei a luz
Quando a luz pedia noite.
Desenterrei a terra
Quando a terra pedia descanso,
Quis frutos quando a semente morria,
Pontapeei o amor, caguei em seios,
Escaquei horas e vozes.
Fui “merda douta”.
O dia agarrado a mim
Como cicatriz.
Nuno Rocha Morais
No jardim de sempre, então, fiquei a ouvir
O vento em árvores familiares,
O mesmo que ouvimos juntos
Quando na voz as palavras já estão apagadas.
É apenas ouvir o vento em árvores familiares
E eu sinto que a minha casa não me espera, mas se dissipou,
Tão pouco é o que levo de ti.
E talvez por isso hoje o vento me pareça tão carregado,
Como se arrastasse algo mais do que os sons que se libertam da folhagem;
E talvez por isso este jardim de sempre e o ouvir o vento,
Tão familiar em árvores familiares,
Sejam a minha casa, onde posso viver um momento,
Um momento que me chega intacto.
E é uma casa onde sei que te amo o bastante
Para saber que não morreria por ti,
Mas enfrentaria um perigo maior: viver por ti.
Nuno Rocha Morais
A densidade de todas as palavras já escritas,
A corrente que respira, violenta:
É contra ela que remo,
Para encontrar esse leito
De página branca,
Onde todo o voo será meu,
Onde cada vez que a mão ousar,
Não estará a ser sorvida pelo lugar-comum
De uma ousadia (o)usada.
Atravesso todas essas vozes
Que encantam e me pedem que fique
E me sente à sua sombra
A ouvir as suas histórias.
Não posso, não posso:
Mais além é a desova da palavra,
Mais além, sempre mais acima,
Sempre mais fundo.
Em tudo o que já foi dito,
Há algo que ainda não foi dito.
Nuno Rocha Morais
Para começar sento-me num jardim
À procura de um regresso que não se acha –
Túneis e galerias,
Um pais perdido tão facilmente,
Mais leve do que o pó.
Uma tarde para experimentar por fim
A minha vida,
Aquela que julguei a minha pior inimiga,
A que me roubou tudo quanto amei
E pouco me deixou nas mãos –
Mas agora não vale a pena lutar contra ela
E sorrio-me do absurdo que é sabê-lo,
Talvez mais até do que combatê-la.
É com a minha vida que me sento,
Percebendo o seu relevo lacunar –
Alguém deverá ter dito desta fulguração última
Sobre a qual vai ganhando consistência
Um sono imprestável,
Que se converte em crosta e fundura
E assim se me revela:
De nada serve ou adianta que outrora –
Ontem, apenas – um nome tenha sido amor,
O nome que se vai desmantelando
No movimento vagaroso da tarde.
Seja como for, a conta estará certa.
Para acabar, sento-me num jardim.
Ao levantar-me, serei simplesmente o que começa.
Nuno Rocha Morais
É por causa dos anéis que os dedos se julgam reais –
E é a oposição entre a luz dentro
E a escuridão fora que dá consistência
Ao interior, diluindo o exterior?
O lugar é uma conjectura incongruente
E o que é que realmente nos torna reais:
Uma dívida, um número de telefone,
O nome de uma lápide?
A irrealidade irá dar o assalto final,
Baralhar interior e exterior,
Num roque inesperado,
Tudo nos consome, mas na realidade
O que é que nos consuma?
Nuno Rocha Morais
Foram anos muito tristes,
Anos em que ganhei dinheiro
E não servia para nada,
Para gáudio dos moralistas.
Anos em que almocei e jantei sozinho,
Em que recusei todos os convites
Enquanto esperava por ti.
Já te havia perdido, mas não o admitias,
E, mesmo sabendo-o, estava-te grato,
Grato até pela agonia.
Foram anos em que provei
Todos os presumíveis sabores da merda,
Sem nada poder dizer:
A tristeza é um dever que não se partilha.
Nuno Rocha Morais
Dura, é imenso,
Invade o odor,
Suspende de espanto o olhar.
Ribomba nos tímpanos,
Gela o tacto,
Domina o gosto.
Nardo de firmeza e poder,
Sumptuoso, imenso,
Coroado pelo sol ou luar,
Não suporta a traição:
Às ondas que desertam,
Que pretendem fundir-se na areia
Sorve e doma-as,
Desvanecendo-as.
Nuno Rocha Morais
De novo, o Verão se lançou ao assalto de Agosto,
Trouxe as suas árvores, aves, horas,
Trouxe o seu rito, o seu ritmo
Indolente, a cidade quase não tem pulso,
Quase não tem tensão arterial –
Sossego de não haver vento,
Mas apenas o ar em bloco,
Bloco abafante, enraizado.
É Verão, quase todos deixaram
As suas mãos operárias na cidade
E lançaram-se na conquista
Das coisas conhecidas, mas já esquecidas,
O que é bastante mais difícil
Do que tactear um espaço envolto em desconhecido
São quase todos argonautas do verde e do mar.
Querem purificar-se no longe,
Despir por um momento a pele
Que recebe fumo, suor, pó, cansaço,
Deixar para trás a insolubilidade das contas,
Que são, afinal, a própria vida.
É Verão e, por ora, a cidade foi domada.
Nuno Rocha Morais
Não te censuro que me não reconheças,
O meu tronco foi margem das estações,
Aí a água e o jogo do tempo
Cumpriram o seu dever.
Também a minha voz se perdeu
Na erosão do silêncio
E já não te posso falar da forma antiquíssima
Como o fazia quando ainda não havia tempo
A galopar, a pender, a cogitar, a esquecer.
As curvas da face são outras,
As antigas foram-se perdendo
Para que o meu coração do tempo me aceitasse.
Quem sou? Não importa.
O meu nome é um eco de esquecimento.
Nuno Rocha Morais
Preciso que me esqueças
Que me esqueças até ao fim
Que me esqueças nas palavras mais fundas
Nos acasos e nos retratos
Preciso que me deixes deixar a tua vida
O palco de súbito tornou-se realidade
De luz angular acre
Amar-te já não é um fogo
Tem o lastro real
Tem o seu quilate em insónias
Em leitos demasiado vastos
Preciso que me esqueças
A tua lembrança de mim
Crucifica-me em não mais poder
Ser que lembrança
Que pesa mais que esquecimento
Nuno Rocha Morais
A História não me trucidou,
Não a ouvi estrondear, zunir, pigarrear,
Não me impôs fatídica mão no ombro,
Não exigiu de mim heroísmos.
Não a predisse, não a moldei,
Não tenho nada que a esbarronde
Nem nada que a alimente
Senão um encadeamento de pequenas histórias –
Desesperos que pareceram grandes,
Mas que afinal o tempo conseguiu tragar,
Desesperos que pareciam abrir abismos
E depois se soldaram num chão inconsútil,
Que transpus sem ser precisa sequer a sombra de um salto,
Alguns males pacatos, embora incuráveis.
Vivi em escalas quase miniaturais, tons menores
Seguindo inadvertidamente a máxima
Que avisa contra os excessos.
Salvei-me da imbecilidade algumas vezes,
Mas fui imbecil muitas outras, tantas mais.
Não porto estigmas, nem auras.
Fui humano e não um fantasma.
Os médicos, os contabilistas, os amanuenses
Que me drenam e dragam podiam bem
Ter sido verdugos numa qualquer máquina de morte –
Calhou apenas que não fossem.
Encaixarei, melhor ou pior,
Em qualquer generalização.
Serve-me a correntia placidez
De um anonimato lapidar,
Uma preparação para o pó.
Televivi claro, grandes massacres,
Maremotos, a fissão atómica de paixões
Que sem dúvida mudaram a face do mundo
E o mais terrível foi, apesar de tanta emoção,
Ter a sorte de ser espectador
Sem sentir a sua realidade
Mais do que uma imagem,
Como tantas outras, indiferentemente
Reais, simuladas, manipuladas.
Nuno Rocha Morais
Terei sempre um sonho para tu encheres.
Ondas de horas
Aportando na minha praia,
Coração evadido,
Fragmentos de ondas estacionais
Erguendo-me subitamente de cima
Do peso da luz deste cais.
São pequenas folhas de dias
Descendo sobre as pálpebras
Abafando um momento
Os passos amargos da morte.
Nuno Rocha Morais
É muitos indivíduos informes,
Uma revoada de equívocos
Que não admitem réplica,
Manancial: sou.
Aqui estão coisas que não chegarão a ser,
Tantos e tantos futuros. Seja.
Há talvez um nome que me procura,
Élitro e música que desce
De onde não pode ser ouvida
Para o último seu destino primeiro,
Onde não será ouvida,
Porque o seu verdadeiro destino é este,
A duração, deixando a memória
De uma vibração inscrita no espaço,
No som do tempo e do espaço,
Como a anilha na pata de uma estrela.
O ser estrangeiro é enorme
Dentro de mim, devora-me,
Perde-me: talvez dure,
Não sei, vibre, nome de música própria.
Nuno Rocha Morais
No outro homem,
Pelo outro homem,
Deixem-me vencer este sangue monolítico,
O coração monocórdico,
Deixem-me ver mais além
Que os meus próprios olhos,
Construir mais alto
Que a pequenez dos meus braços,
Apontar outros barcos.
Deixem-me, vocês, aí,
Heras ou estátuas
Que detêm o meu choro e o meu riso,
Vocês, aí, que me decepam as mãos,
Me atulham a voz com palavras de porcelana,
Vocês, aí, que só sabem calar
E sabem ver morrer:
Deixem-me viver o meu peito como a página
De um dia claro.
Nuno Rocha Morais
Por falar da noite, herdei o romantismo:
Ando vestido de romântico,
Falo por gestos de romântico,
Estou up-to-date: sou romântico
E estar na moda não é ser poeta,
Mas, neste caso é ser romântico.
Num peso levíssimo, sinto
Tanta, toda a poesia que não posso,
Toda a poesia que não sei,
Toda a poesia iminente, latente
Que em mim não se faz ouvir.
Sou romântico, estou na moda, não sou poeta.
Nuno Rocha morais
A minha voz pode esquecer-te, Mas não o meu silêncio. De sofrer por ti fiz a minha casa – O escárnio e o absurdo Passam sempre, por mais que...