quarta-feira, 28 de outubro de 2020

 

O silêncio dobra o dia,

Deposita-o no cinerário dos passados,

A noite liberta-se.

Sente-se.

 

Aqui me sento.

Espero que ela me lacre,

Que ela acabe comigo qual hoje fui,

Que do centro dela

Eu nada veja para trás o quanto fui.

 

A noite vem despertar um pouco mais

A minha vocação para a morte,

O morto que cresce e me estagna,

E me enlameia.

Preparo-me para renascer.

 

Nuno Rocha Morais

sábado, 24 de outubro de 2020

Visão

 


A música ondula, sobe,

Coleia, modula, serpenteia,

Oscula, refreia, fere

E cauteriza, e é assim,

Por graça destes sons, que o espírito

Oculto nos seus recessos, enclaves, montanhas,

No relevo acidentado do que somos e não somos,

Se deixa atrair pelo sortilégio

E existe no espaço, por alteração de estado:

O que é som passa a imagem

Que se projecta e desloca no espaço

Absortamente disposto em torno destas volutas

Que sobem e descem e dispersam,

Sem nunca se perderem dentro de nós,

Trazendo sempre consigo mais um motivo  -

Lugares, perfumes, vivos e mortos –

Mais uma figura a acrescentar ás visões

De sentidos que em nós eram informes.

Mas o que é o reflexo de quê?

A insidia destas notas, destes compassos, destas pausas,

Reflecte o que o espírito contém

De tristeza, júbilo, amor, fúria,

Ou é o espírito que se vai criando

À imagem de sons que se desprendem,

Como numa maturação de fumo,

Para logo ganharem forma

Por esta paisagem liquida, deslizante

Que a música também já é?

 

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Rascunho


 

A solidão é intolerável quando

Já não restam olhos que permitam choro algum,

Quando as lágrimas são apenas sombras,

Sendo por isso tão mais salgadas...

A solidão não mata, mas morre-se dela.

Assim, prosaicamente,

Tão prosaicamente como pousar a cabeça na almofada

E sentir-se um vulto de vácuo em volta,

Pensar-se “Estou só”.

 

A solidão não é o tempo,

Mas os intervalos do tempo.

Na ampulheta da mão vazia, absoluta,

Totalmente vazia, as estrelas são pó.

Na mão absolutamente vazia,

Nenhuma outra mão desagua,

Não se fundem linhas,

Não se fundem caminhos que se mutam em anéis

A que outros dão o nome de sentimento.

A solidão é uma mão vazia

Como uma janela fechada.

 

A solidão não é Deus.

A solidão nem sequer é o homem,

Mas um estádio final,

Um passo que a distância já não concede

E imobiliza.

Não, a solidão não é o homem.

 

A solidão é intolerável

E porque intolerável

Ao fundo dela há sempre o cintilar dum fim,

Um brilho afirmando que solidão não é morte.

 

E cada homem subscreve isto

Com o nascer cada dia.

 

Nuno Rocha Morais



quinta-feira, 15 de outubro de 2020

 

Não te creio no útero de uma sepultura

Onde nasças para qualquer vida eterna.

És ainda a figura frágil,

O riso encanecido pelos anos

De uma tristeza obscura

Os anos de amor racionado

Sob o ronronar dos bombardeiros,

És ainda as mãos nodosas,

As pernas inchadas,

És ainda os olhos semicerrados

Entrevendo a secreta linhagem

Entre os gatos e a música clássica.

Nada te pôde mudar, decompor, prender.

Neste dia de luz que o Inverno estranha

Se algo te confina é o voo de uma gaivota.

Se não és corpo, à memória de ti chamo avó.

 

Nuno Rocha Morais

domingo, 11 de outubro de 2020

Apelo à justiça

 

Invoca-se a balança

Dos actos e das palavras –

Apelo que se ergue

E, quase sempre,

Grito que se perde.

 

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Abraço o demónio

Que em mim também sou eu,

Bebo cristais de crime,

Resíduos do mal,

Embriago-me no vertiginoso sorvo

Da tentação alcoólica.

Aceito que tudo em mim sou eu.

 

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O erro
Erraste, falhaste
E é toda a tua alma reunida
Numa tenebra, num tormento
Que, com a sua força centrípeta
Te arrasta, te puxa, te clama, te exige
Que assumas toda a pecha,
Toda a tinta derramada no espaço,
Toda a tinta que transbordou
Do pensar, da palavra, do gesto.

Atravessas a tua alma,
Convulsionada pela dissonância,
Desgrenhada pelo facto que se quebrou
Contra as leis conhecidas
E dóis-te.

Mas pensa:
O erro é verde haste
Que natureza ou deus nunca errou?
O que é divino ou natural
É afundar, exilar, desvanecer o erro
Na ordem perfeita.

Pensas ainda:
Parte da alma é erro,
Parte do sonho é erro,
Parte de mim é erro,
O erro é clara e certa metade da face.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...