sábado, 25 de abril de 2015






Há uma outra excelência nas cidades
Que têm um rio por alma,
Cidades aéreas e viageiras
Onde até a pedra é volátil,
Corpo nómada.
Desçamos ao cais: O rio à cintura da cidade
As frontarias das casas estão escurecidas
Pela humidade do tempo,
Mas há aqui um prenúncio de passado,
Uma história emergindo da obscuridade
Como a linha da terra emerge
Do horizonte estéril.
Todas as noites, todos os séculos
Se abeiram e aportam aqui
Podemos ouvi-los falar –
E até ver a sua fé cravejada de especiarias, ouro,
Sentir a fragrância dos mortos,
Os seus corpos atravessados
Pelo vento que vem do mar,
E entendemos estes séculos,
Aqui reunidos em consílio.
Partem, majestosos, sobem o rio
Mas deixam sempre vestígios,
Continuamente o passado
Visita o presente e o altera.
E é estranho que as coisas que não conhecemos
Não sejam irreconhecíveis.
As cidades com um rio por alma
Viajam, barcos para subir o esquecimento,

E é estranho que as tenhamos como nossas.

                                                            Nuno Rocha Morais



domingo, 19 de abril de 2015

Sorrisos para Mona Lisa



I
 O sorriso insondável
 Revelação sem evidência,

II
Se uma mulher feliz,
Se traída, se melancólica,
Se jubilante, se terna –
Nunca com tal intensidade
Um sorriso foi tão pouco:
Um sorriso para que nunca saibam
Quem fui, quem sou.

III
Sorrio-me talvez para vós,
Que me mirais
E estais mortos.

IV
Atraiçoei a minha linhagem,
Entreguei-me nos braços de um amante vil –
Este estar aqui –
Por ódio, por ódio;
De ódio é este sorriso
E os olhos semicerrados.

V
Ou a fadiga
De que nunca sabereis,
Convencional esposa
E mãe e trapo,
Por sorriso só esta fadiga
De que nunca sabereis.

VI
Nada entreabre de mim
O sorriso que nem é meu,
Mas uma gentileza do pintor.

VII
E eu saberei
Tudo de vós,
Por isso sorrio.






Nuno Rocha Morais







domingo, 12 de abril de 2015

Os avós

O sol entra secretamente pela janela
E deixa impressões semióticas na parede
Luz coada por cortinas de histórias.
O avô pega em mim e senta-me
Nos joelhos da marmelada quente
Que a avó criava com mãos alquímicas.
Gatos de cheiro andam por cima dos móveis,
Cheiros como passos rangentes
No chão de mistério de corredores solenes
Guiando à antiguidade da escuridão.
O Joli ladra – chegou o Inverno
Que invade a casa, arrefecendo-lhe o silêncio.
O Black abre a porta – que gato!
O avô cuidava das laranjas,
Eu, atrás dele, enterrando secretamente a minha infância.
Depois, à noite, a avó contava-me a mim e às lâmpadas,
Porque é que não estudou alem da 4ªclasse,
E eu dormia, de rosto encostado à ternura dos avós.
(O avô fumava Definitivos e a noite não era definitiva
Iam-me murmurando os olhos de cor,
                   O avô, na tropa, disparando um canhão.)


                     Nuno Rocha Morais

                    Poemas Sociais (2019)




Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...