sábado, 22 de outubro de 2022

 Ela escondia-o tão bem em si,

Sem mãos e sem lábios,

Em ruas sem nome, portas sem número,

Que o rosto dele dispersou como pó

E é uma impossibilidade;

Ela escondia-o tão bem em si,

A ponto de a carne dele ser uma mentira

Que o corpo não bastava para desmentir.

Agora, atingido este conforto,

Verdade alguma o pode encontrar

E tudo acaba bem, com ela a esquecer

Que alguma vez o escondeu,

E ele mesmo esquecido de si.


Nuno Rocha Morais

sábado, 15 de outubro de 2022

Aproximam-se os tempos impossíveis

E nada do nosso possível lhes servirá de antídoto,

Nem sequer os umbrais ungidos de sangue.

Nada poderá impedir que chegue

O chacal com o lacaio pela trela.


Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Estação


 Ai, as cidades aproximam-se

De novo do mar,

Numa zanga superada,

E suponho que, agora,

À mesa de uma esplanada,

O teu riso decreta o Verão.

E uma estação arrefece. 


                                             Nuno Rocha Morais

terça-feira, 4 de outubro de 2022


Não gritei: já sabia que Deus

Me tinha abandonado.

Não pedi que afastasse de mim o cálice

Porque eu era o próprio cálice.

Depois da sexta crucificação,

O meu corpo era tao insensível

Às suas chuvas como a terra estéril.

Batiam-me, os seus movimentos

Rasgavam-me, mas eu já estava

Fechada, como flor anoitecida,

Muito longe de mim,

Onde não me podiam alcançar.

Eu sabia que eles voltariam

Ainda muitas vezes,

Mas nem o seu ódio me conseguiu engravidar.


 Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...