quinta-feira, 28 de outubro de 2021


 

Estou à tua espera

E sou uma multidão que passa,

Flui e reflui, e talvez me impeça

De te ver.

Esperar-te não fará por ti o caminho,

Amar-te não será em ti amor,

Não é sequer a melodia

Que a mim trará o teu coração ouvindo,

Mas espero-te e há por isso

Tanta coisa de mim que voa,

Talvez até ao próprio chão

Não resista a lançar-se no espaço.

Esperar por ti é ouvir-te,

Mesmo que não chegues,

Mesmo que a multidão que passa venha

Impreterível, devolver-me pedaços,

Até me recompor sozinho.

Espero-te e sou assim alguém que lança

Água no deserto e espera

Que, à força de esperar, a água cresça.

 

Nuno Rocha Morais


sábado, 23 de outubro de 2021

 

Num dia, como qualquer outro,

Não reconheces a mulher que amas

E não sabes se esse amor

Ainda lhe pertence, ou a ti, ou sequer se existe.

Em dias como outros, morrem pessoas que amas,

E ficas dentro das suas mortes,

Na órbita de uma ausência

Que recusas infantilmente,

Que recusas sem efeito,

Porque, dia após dia, a morte

Não recuou, não desistiu.

Há quem diga que tudo isto

Acabará por fazer de nós

Pessoas melhores, mais sábias,

Com aquela sabedoria de quem já abriu

Muitas portas, de quem tem

Nos olhos muitos olhares.

É o sangue perdido

Que nos faz melhores?

A voz trémula que julgam ouvir

É certeza, sabedoria? 

 

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

 

Pé ante pé, como se de cada passo

Dependesse a sua consistência,

Um conceito, uma sombra,

Uma flor que precede a raiz:

Tudo em nós deveria ser esta tentativa

De encontrar uma sabedoria,

Da qual nunca poderemos saber muito,

Que não fosse uma sucessão de desenganos,

Um brinde último de cicuta,

Uma ária amarga de vértebras quebradas,

Uma apoteose de restos e andrajos,

O acorde perfeito num auge de ruínas,

Mas uma sabedoria de celebração,

De êxtase, de regozijo, de coroação.

E nada é tão comovente

Como o movimento de uma dúvida,

Desenrolando-se, com uma reticência

E uma arte que aprendeu com a manhã.

A sabedoria, uma salamandra

No interior da sua própria chama.

 

Nuno Rocha Morais


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Xadrez



 

O rei das pretas quer abandonar o tabuleiro,

A dama não o deixa, mantém-se entre as hostes.

Não se vêem as brancas, envoltas na bruma.

Não se moverão, até verem o primeiro peão,

Talvez o de rei, a dar um passo.

O bispo negro da esquerda tentará desertar

E acabará em pesado gambito.

Só a dama se dispõe realmente a lutar,

A quebrar a rede de lances condicionados,

Mas também ela acabará por cair,

Sem ter visto sequer as brancas,

Sempre envoltas na bruma.

 

Nuno Rocha Morais


domingo, 10 de outubro de 2021

Pilha (1)

 

Não o conheço. O cheiro dele é-me estranho.

Consinto que me pegue, me faça festas,

Mas não escondo o meu fastio.

Trata-me com uma familiaridade

De que os gatos não gostam.

Tenho impressão de que outros vieram,

Ficaram algum tempo, o tempo

De me afeiçoar a eles, de lhes ronronar,

De lhes escolher o peito para dormir,

Sim, outros vieram, mas não ficaram

E nunca mais voltaram

Ou não voltaram a tempo

De que a minha memória ainda os guardasse,

O que vai dar ao mesmo.

A memória de um gato é curta

Porque o afecto não se pode demorar

Em quem não volta depressa.

           Outros vieram. Seriam sempre o mesmo?

É impossível saber, é impossível reconhecer.

Mas vou afeiçoar-me a este,

Vou ronronar a pedir-lhe colo,

Dormir junto a ele. Sei que não vai ficar

E que a memória de um gato é curta.

           Mas, enquanto dura, é ferida bastante.

 

Nuno Rocha Morais

(1) Nome da gata do Nuno


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

 A imagem de ti em mim:

Não sei quem capturou quem,

Se alguma coisa.

Essas imagens, às vezes uma tempestade,

Outras um caos de brilhos.

Teria sido muito menos infeliz

Se nunca te houvesse conhecido,

Mas certamente também

Muito menos feliz.

Assim, anulou-se para mim a diferença

E na balança pesam exactamente o mesmo,

Numa verdade falsa em absoluto

Numa falsidade absolutamente verdadeira.

 

Nuno Rocha Morais                                                                

                                                                    


domingo, 3 de outubro de 2021

Inventário

Este é o meu boné, 

Este é o meu capote,

Meu o estojo da barba

Num saco de linho.

 

Lata de conversa:

Meus o prato e o púcaro,

Risquei no alumínio

O meu nome.

 

Risquei-o com este

Precioso prego

Que escondo de olhos

Cobiçosos.

 

No bornal, um par

De meias de lã

E algumas coisas mais

De que a ninguém falo.

 

À noite é-me almofada

Para a cabeça.

O cartão está aqui

Entre mim e o chão.


A mina do lápis

Amo sobretudo:

De dia escreve-me os versos

Que pensei à noite.

 

Este é o meu caderno,

Este o meu oleado,

Esta a minha toalha,

Este é o meu cordel.

 

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...