quinta-feira, 23 de junho de 2022

Altruísmo


Deixem-me ser homem,

No outro homem,

Pelo outro homem,

Deixem-me vencer este sangue monolítico,

O coração monocórdico,

Deixem-me ver mais além

Que os meus próprios olhos,

Construir mais alto

Que a pequenez dos meus braços,

Apontar outros barcos.

Deixem-me, vocês, aí,

Heras ou estátuas

Que detêm o meu choro e o meu riso,

Vocês, aí, que me decepam as mãos,

Me atulham a voz com palavras de porcelana,

Vocês, aí, que só sabem calar

E sabem ver morrer:

Deixem-me viver o meu peito como a página

De um dia claro. 


Nuno Rocha Morais

domingo, 19 de junho de 2022

Sacrifícios da moda

Por falar da noite, herdei o romantismo:

Estou catalogado por romântico,

Ando vestido de romântico,

Falo por gestos de romântico,

Estou up-to-date: sou romântico

E estar na moda não é ser poeta,

Mas, neste caso é ser romântico.

 

Num peso levíssimo, sinto

Tanta, toda a poesia que não posso,

Toda a poesia que não sei,

Toda a poesia iminente, latente

Que em mim não se faz ouvir.

 

Sou romântico, estou na moda, não sou poeta.


Nuno Rocha morais

sábado, 11 de junho de 2022


 Eles partiram. Talvez tragam sol,

Talvez tragam sol à ranhura do horizonte,

Trazem peixes que atravessaram

A fronteira entre céu e o mar.

Trazem o norte de gelo no ventre do bacalhau

Trazem cheiros de sonhos e Américas nas sardinhas

Trazem praias e luz morena nos linguados do sul.

A bússola da fome aponta o mar,

É preciso partir e é preciso chegar,

É preciso voltar para a mulher

Que tenta repelir o negro adúltero.

Os pescadores sabem que só chega o dia

Quando pisam na praia cantante.


Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 8 de junho de 2022


            Agora que a data se aproximou,

Se instalou, irredutível,

Tudo se há-de deixar fecundar

Por um sentido –

O lugar vazio como vento,

O mármore, as flores,

Que tomaram o lugar do sofrimento.

 

Nuno Rocha Morais


quarta-feira, 1 de junho de 2022

Cancioneiro


Deixa-te ouvir cada palavra,

Deixa cada palavra ver-te ouvi-la

Até que confie em ti

E te deixe segui-la no seu silêncio.

Segue-a, pois em silêncio,

Numa atenção desatenta,

Esquecida de si própria

E, porém, rapace.

Conhece o silêncio de cada palavra

Para a poderes perseguir, seduzi-la,

Sabe como convocá-la sem a dispersar.

Mas podes buscá-la ainda

Nas suas zonas de iluminação pobre,

Afastadas de um centro radiante,

Talvez aí a encontres.

Não precisa de ser impoluta

O verso é um efeito

Da pureza por artifício.

 

As primeiras falhas de um lirismo,

A primeira máscara arrancada

A um rosto assustado. 

 

Nuno Rocha Morais


Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...