terça-feira, 30 de setembro de 2014

E em cada poema, As mesmas palavras

E em cada poema,
As mesmas palavras


Eis que cada poema sai
De outro e diferente vazio
Outros felinos e ígneos olhos
Abre na sombra,
Outra sempre também a luz
Em que cada poema se entroniza.

E em cada poema, as mesmas palavras
Nascem sempre de outros sentidos,
Chegam sempre por outras áleas
Por inimagináveis rectaguardas,
Por ignoradas entradas.
Eis que cada poema brota sempre
De um novo e outro vazio,
Como se do centro de pensar

De um sempre outro poeta.





Nuno Rocha Morais




quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Tenho a pedra da treva pelo meu lado.
Do poeta sou somente o gesto abstracto
A que a palavra só concede o tacto
Do plano dizer, não mais. Sou poeta vendado.

E apenas cantarei o que é exacto,
A superfície fácil do olhado
Que sai do canto vão, vitrificado,
Deixando ao poema só mera forma do facto.


Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Senhor, é já algo que transborda,
Eflúvio de sal ou dor
Que rouba aos gestos a cor
E apaga a corda do riso.

Senhor, eu sou tormenta,
Mas também sou barco.
Neste que luta, naquela que rebenta,
Em qual, Senhor, posso ser fraco?


Nuno Rocha Morais

                                     Ilustração de Rasa Sakalaite

segunda-feira, 22 de setembro de 2014


A morte nada dura
É tempo de despir o luto
Antes que comece a confundir-se com a pele
Oh! A morte nada dura
De novo há pássaros que submergem
O lento remar dos adágios
O grave requiem dos prantos
A morte nada dura
Os mortos voltam nos vivos
Aos vivos



Nuno Rocha Morais

domingo, 21 de setembro de 2014

Tradição

Com dedos antiquíssimos,
Deixaram-se raízes
No barro, na madeira –
Vigília da voz nas formas
E na matéria.
Provérbios de água,
Quadras de terra,
A geografia do ser
Português.
       Nuno Rocha Morais

                   
Eu sou daqui
E não sei senão ser daqui,
Como os rios que em oceanos se fundem
E nunca esquecem o seu rosto inicial:
Leve, quase alado suspiro de água
Entre inominadas rochas.
Os rios retomam sempre
Essa sua infância.

Eu sou daqui
E não sei senão ser daqui,
Mas tu não entendes
O peso que é, às vezes, ser daqui:
Tu és filha de cosmopolita néon,
És eco de outros rios.
Portanto, não podes entender
O peso que é, tantas vezes,
O ser português.



Nuno Rocha Morais

sábado, 20 de setembro de 2014

Poemas publicados no Jornal “Noticias de Penafiel” – Cultural Coordenado por Dr. Alfredo de Sousa


Noite

A amazona do seio de prata
Solta a sua revoada de dedos.
Ondulas sombrias de feitiços:
Invenção das sombras,
Aparição à consciência do Universo
Dum lado oculto e obscuro das coisas,
Dum lado oculto e obscuro das palavras,
Dum lado oculto e obscuro dos homens.

Centrando-se nesse oculto,
Uma escrita levanta-se:
O lado oculto dos homens
Liga o oculto das palavras
Ao oculto e obscuro das coisas.

É inevitável que tudo seja dito,
Até o inominável eterno.

São inevitáveis os poetas.



Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Poema publicado no boletim da língua portuguesa nas instituições europeias "a folha"


Tempo e negação

Mudo com o tempo que não muda,
Hei‑de impor‑lhe a minha metamorfose.
Nada será de criaturas e essências
Que eu não filtre,
Passados, planetas, marés, distâncias.
Será apenas o que eu passei
E nunca o que eu passar.
Existe sempre depois de mim
E é um pobre Narciso,
Vendo‑se no rosto que abandonei.
Mudo com o tempo que só existe
Enquanto mudo, e um pouco depois
Para trás, em espaços aleatórios,
Interstícios arbitrários, construções.
Não existo nele e ele à minha frente
Senão quando o penso e projecto;
Sou a sua fronteira e caminho.
Ouço‑o: raspa, roça, ronda,
Possivelmente com fome. Deixá‑lo.
Depois de mim, irá livre.
para nunca mais ser tempo.

Nuno Rocha Morais



quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Excertos de cartas a amigos


Escrever aos amigos acalma-me e apazigua-me mais do que um chazinho.
Há as imagens – a amizade como casa, como caminho, como lugar que nos espera e a que se regressa sempre, como rio que o tempo e tudo o que acontece numa vida enriquecem. Mas há sobretudo a tua imagem: do amigo-irmão com quem se partilha tudo – amores, alegrias, tristezas – e assim se alimenta a amizade. Sempre!


Não acredito que possa ser «triste» ou «anormal» aquilo que nos realiza, que nos permite sermos nós próprios. Prefiro pensar, com o Terêncio, de que nada do que é humano nos é estranho. O amor é só um, a felicidade é só uma, qualquer que seja a forma de os sentir e realizar.
Não é preciso muito para sermos mais felizes – «só» temos de encontrar o caminho.
Qualquer que seja o lado para que vás, hás-de estar sempre no caminho certo. Isto não é op­ti­mismo nem esperança religiosa ou filosófica, é uma constatação porque, depois de se es­­colher, é por aí que se vai; donde, tem de ser o caminho certo; mesmo que o não seja — faça-se.

Faz o que faz quem ama: espera e confia. Não descanses o coração, descansa é o pensamento.



Tudo o que me impressiona tem reflexo em verso.
A poesia é a minha legitimação, a legitimação do meu bem e do meu mal, do júbilo ou do desespero que atravesso, do amor de que sou capaz e daquele que falho.
Cada verso resulta da assimilação de uma lição.
Por mim, estou certo de que a poesia me «salvou» em vários momentos — neste sentido: deu-me força, deu-me coragem e argumentos para essa coragem, mesmo quando eu me julgava farto de tudo, incluindo da própria poesia.
Nos dias seguintes aos atentados em Madrid, houve uns versos do «Poeta en Nueva York» que não me saíram da cabeça: «No duerme nadie por el cielo,/ no duerme nadie». Não sou um especial admirador da obra do Lorca, mas a grande poesia impõe-se precisamente assim, nestes momentos. Quando achamos que a poesia não é possível depois de Auschwitz, que só nos resta uma mudez calcinada e atónita, surgem de nenhures uns versos a demonstrar preci­samente o contrário. De resto, não foi à toa que, um bocado por toda a parte, se viram poemas - do Cernuda, do Celaya, do Blas de Otero, do Dámaso Alonso. «Every poem, an epitaph», com os necessários decoro, contenção e força.


As invasões bárbaras - do corpo pelo cancro, das sociedades por muitos tipos de miséria, de umas culturas pelas outras, da inocência pela brutalidade - não são propriamente uma solução, mas um apelo à reflexão e a esse «we must be kind with each other while we still have time» de que falava o Larkin.
Dizia o João Cabral que se morre da morte que ela quer, mas […] não vejo por que é que o valor da vida há-de continuar a prevalecer sobre o valor de uma morte serena e sem sofri­men­to. 
Quando for hora, saio de cena, sem «cenas».
Lembro-me muitas vezes do epitáfio do Sena ao Casais Monteiro, em que se perguntava: «Como se morre, Adolfo?». Vejo agora que é assim.
Esta morte é o desenlace infeliz de uma história feliz.
Oxalá possamos dizer boa noite assim, tão sem ressentimento contra a morte, contra a vida.
O importante é não azedar, dar o troco com um sorriso…

Nuno Rocha Morais






Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...