sábado, 23 de novembro de 2019














Que sei eu do passado?
Só o que em mim há de presente.
Não posso olhar para trás,
Parar para ver que estou construído
Sobre tudo o que perdi,
Parar para ver quem morreu,
Quem amei, quem foi,
Parar para traçar na memória
Todos esses nomes, agora irreais,
Vultos, sombras líquidas, sonhadas.
Não parar sequer para dizer hoje,
Não parar sequer para pensar
Que a manhã é apenas mais um sol-posto.


Nuno Rocha Morais (Galeria) 

domingo, 17 de novembro de 2019

 
A Alexandre O’Neill

Perdoa-nos, Alexandre, a nós,
Poetazinhos por metáfora,
Rói-unhas, sempre agarrados à vida
A ver se a esticamos um bocadinho mais;
Que fazemos da poesia destilaria,
Não para a dar a todos,
Mas para nos emborracharmos de solidão,
Construirmos o nosso quadradinho iluminado,
Para que os nocturnos nos invejem
E leiam os nossos versinhos e nos agradeçam em bronze —
O da memória só não chega.

Perdoa-nos, Alexandre,
Que não soubemos ser teus herdeiros,
A rir, quando, na verdade, choramos,
A olhar para o espelho e a colar o reflexo em quem somos
E não fazer operações plásticas no pensar e sentir.

Perdoa-nos, Alexandre, a nós,
Poetazecos do beco seco,
Que não sabemos que há dois lados numa linha:
O de cá, que é onde apodrecemos,
A linha que proíbe que passemos
E o lado de lá que nos obriga a passar,
Onde o reino não é de rei nenhum.
Perdoa-nos, Alexandre, a nós
Que não sabemos
Não ousamos chegar ao outro lado,
Chegar ao teu lado,
Real O´Neill,
Onírico O´Neill
Completo O´Neill
Poeta O`Neill
E, ah, português O´Neill
(Ironia até ao fim!)



Nuno Rocha Morais (Galeria) 

sábado, 9 de novembro de 2019

Sorrisos para Mona Lisa


I
O sorriso insondável 

Revelação sem evidência,
Se uma mulher feliz,
Se traída, se melancólica,
Se jubilante, se terna –
Nunca com tal intensidade
Um sorriso foi tão pouco:
Um sorriso para que nunca saibam 

Quem fui, quem sou.

II
Sorrio-me talvez para vós, 

Que me mirais
E estais mortos.


III
Atraiçoei a minha linhagem,
Entreguei-me nos braços de um amante vil – 

Este estar aqui –
Por ódio, por ódio;
De ódio é este sorriso
E os olhos semicerrados.


IV
Ou a fadiga
De que nunca sabereis, 

Convencional esposa
E mãe e trapo,
Por sorriso só esta fadiga 

De que nunca sabereis.

V
Nada entreabre de mim
O sorriso que nem é meu, 

Mas uma gentileza do pintor.

VI
E eu saberei 

Tudo de vós, 
Por isso sorrio. 

Nuno Rocha Morais (Galeria)

domingo, 3 de novembro de 2019


Mudamos de heróis
Ruy Belo

É ainda litoral a fantasia
E o sonho é costume de estar vivo
De ter os olhos abertos
Sentimos esta chama de nós contra nós
Que bom seria sermos outros
Nas alheias bocas o nosso nome desferido
Na sanguínea rosa de herói
Somos jovens crescemos em nós
E já lançamos de nós as raízes
Do desejo de sermos heróis
De invejarmos os heróis
Desde crianças o sonho dos heróis
Figura colorida
Musculada coragem
Assombro inteligente
Heróis
Nunca pacificados dentro de nós
Nunca conseguimos pentear o ser
Com uma calma e burguesa risca-ao-meio
Depois vai-se tornando frígida a fantasia
Em nós decresce o esplendor da admiração
Pelos heróis de sonho
São outros agora “mudamos de heróis”
É o poderoso magnate
O empresário(a) de sucesso
Invejamos as mãos que conhecem
O lauto sabor da fortuna
São estes os heróis que desejaríamos
Vivessem em nós
“Mudamos de heróis”
Continuando sempre a querer ser
Outros.


Nuno Rocha Morais - Galeria 

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...