domingo, 30 de setembro de 2018

O dia despe-se,
Visível é já a pele da noite.
A luz dança com as sombras,
Dancemos também.
Dentro de nós ateiam-se
As cinzas da música,
Que em ritmo e chama
De novo se reúnem.
Dancemos por estas ruas,
Múrmuras, secretas,
Fluindo lentas pela tranquilidade
Que coroa o ocaso.
Dancemos, deixemos
Que os gestos nasçam
E se libertem dos corpos
E se percam na música inaudível
A que pertencem.
Dancemos, somos esperados,
Renascidos, do outro lado da música.


Nuno Rocha Morais

domingo, 16 de setembro de 2018

Copérnico


Ingénua, a Inquisição
Não criou a sua própria imprensa.
Talvez então pudesse ter defendido
Os seus tomos e as suas teses;
Talvez passasse até por vitima
De um Copérnico vil, traiçoeiro,
Um arrivista a requerer protagonismo.
Talvez então, empurrado pela opinião,
O sol se remetesse para a órbita da Terra
E bem diversa fosse a estrutura do sistema.
Menos sorte teria tido Galileu,
Mais outro original a querer reconfigurar
Em movimento a estase do mundo,
Inoculando a imperfeição
Numa tranquilidade modelada.
Não seria preciso ameaçá-los com a fogueira
Se os jornais os houvesse queimado
Com escândalos, fraudes, fracassos.
Afinal, estariam enganados
Afinal o mundo é plano, linear,
Com os jornais ao centro,
Girando em torno deles.
Nada importa o lugar do sol,
A crónica de um dia,
A astronomia é uma ciência dos mercados,
A tinta que suja os dedos
É cinza de inúmeras fogueiras,
Escurecimento de muitos sangues.


Nuno Rocha Morais

domingo, 9 de setembro de 2018

Não sou uma caranguejola,
Não só quero a porta aberta,
Como abertas as janelas e a luz
E quero que lá venhas
Despertar-me o corpo
Da febre que nele se enrosca,
E não quero gente tecendo
Sussurros pressagos à minha volta:
Que falem alto, que se riam,
Que não haja um prenúncio de negro
Pesando-lhes nas feições.
E flores e água e roupas leves,
Mas, sobretudo, riso no tempo
Amplo, aberto,
A promessa de que o corpo
Se recomeçará puro,
A promessa de que o corpo
Alguma vez voltará à vida.

Nuno Rocha Morais

domingo, 2 de setembro de 2018

O tempo cresce.
Manhã dentro, o carteiro chega.
Traz algumas folhas verdes,
Contas misturadas com lama,
Chuva embrulhando distâncias.

O carteiro chega,
Às vezes, trazendo pequenas mortes.
Daqueles que cabem em envelopes
Ou as alegrias que palpitam nas páginas
Para logo se agarrarem ao peito.

Chega o carteiro,
Trazendo o nascimento do céu,
O quebrar do caminho...
Mas que chegue sempre o carteiro
Trazendo a vida para dentro dos círculos,
Pequenos e íntimos e narrativos.


Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...