sábado, 30 de março de 2024

 

Sobretudo não esquecer

Que também foi um homem

E que esse sangue lhe trouxe

As imagens mais violentas,

À luz dúbia, de biombo,

É impossível saber que rosto fita:

Imolação ou redenção?

Talvez aqui se entrelacem 

Para o jogo de sombras chinesas.

Não esquecer que foi um homem

E que a laceração da carne

Nunca lhe foi abstracta

Nem, tão pouco, o amor esmagado

Contra as paredes da alma.

 

Será talvez uma fábula,

Um homem que fala

Por detrás das suas palavras

Quando deveria estar silencioso

No que lhe resta de deus,

Mas fala em vozes sobrepostas

E a bifurcação é o mesmo caminho

Na sua dor em fogo lento.


Nuno Rocha Morais


 

domingo, 24 de março de 2024


Sofro esta turbulência cega,
O choque de astros e pássaros e ventos,

O redemoinho de folhas e silêncios.

Nada sei do que estas saudades desenterram e choram,

Silhuetas escuras que passam e voltam

E voltam a passar, no circuito fechado

De uma tristeza que aboliu todas as lágrimas –

Queimadas por dentro pela nascente –

E se concentra apenas em si mesma,

Sem se multiplicar, embora pudesse ser

Esta rua, este vento, estas folhas e o silêncio

De um mundo desmantelado.

Que me quereis perpétuas saudades?


Nuno Rocha Morais

domingo, 17 de março de 2024


“Era uma vez”:

Aqui começa o tempo anulado,

O oásis, a cidade

Que surge perante a caravana

Vergada pelo peso do deserto

E do céu nítido.

Aqui começam as danças verdes,

Aqui começa a escorrer a origem.

Aqui “era uma vez”:

Aqui a gárgula das palavras,

Aqui começa uma lenta leveza,

Um esvoaçar de espanto,

Aqui começam os alfabetos

Das línguas como tapetes voadores,

Casas de açúcar, florestas.

Aqui começa a voz nascida

Dentro de tudo: animais, casas,

Árvores, águas, ventos.

“Era uma vez”:

Aqui se sepulta o pensamento,

Aqui se combinam os quatro elementos

De não se existir

Na redoma de uma vida caducifólia.

“Era uma vez”, “Era uma vez”:

Aqui se abrem os céus do voo,

Aqui se recomeça a alquimia da infância,

Aqui se aboliu toda a idade.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos dias (2022)

 

domingo, 10 de março de 2024

Acontece às vezes que a neve

Punge a terra, não é, avô?

Curto-circuito no coração

E rebentam factos e afectos, como bolhas,

E apaga-se o que foi um homem:

Os olhos muito azuis, a tropa –

Artilharia – na Serra do Pilar,

E os postais de aniversário

Ao doutor Salazar e o amor

Pela avó, pequenina, doce, ruiva.

Perdoa-nos por te chorarmos,

Não sabemos ainda o que já sabes,

E o que sabe o velho marmeleiro

Que se ri lá fora.


Nuno Rocha Morais 

(Poemas dos dias - 2022) 

domingo, 3 de março de 2024

Há momentos que dentro da solidão

Se desejam e se anseiam.

Agora perco este lacustre elitismo,

De vegetal culto, de mui sábio nabo,

De iniciado, pela sabedoria,

Nos mistérios da ignorância,

Na apreensão da inapreensibilidade,

Na nomeação do simples em teias.

Nestas paredes que figuram abismos,

Em cujo epicentro eu me encontro,

Desejo ver familiar serenidade,

Não esta cor vazia e carente,

Mas as sombras criadas

Por um bom fogo burguês na lareira.



Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...