quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Lançamento de Poemas Sociais

Demos mais uma vez resposta ao desejo do Nuno:
                                   "QUE NÃO ACABES NUNCA DE ME ESQUECER"      

O terceiro livro de Nuno Henrique Rocha Morais - Poemas Sociais - editado pela Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, por iniciativa do seu Presidente Francisco Duarte Mangas, foi lançado a 28/1/2020.

Foi apresentado pelo Dr. João Luís Barreto Guimarães, poeta e médico, que honrou a obra do Nuno com uma bela sessão. Foram lidos vários poemas da obra por amigos e familiares.

(Fotos de Tiago Bettencourt - maisvezes.pt)








segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Depois (Auschwitz)


Primeiro, o verbo tem de ser
O arame farpado, o comboio
Que estaca no inferno sem círculos,
As portas dos vagões que se abrem,
Os gritos, os olhos que não têm tempo
De se habituar ao trânsito
Entre uma e outra treva.
Depois, o verbo tem de ser
Prisioneiro dentro desse arame farpado,
Sob a vigilância das torres,
Tem de ostentar hematomas,
Os mal contidos ossos como insígnias
A comunhão esquálida
De um mesmo rosto.
O verbo tem de se acautelar
Para não o comerem,
Tem de se deixar abraçar
Por alguém que o confundiu
Com outro alguém, amado ou conhecido,
Que não jaz, mas se dispersou
Em fumo e cinza;
Tem de respirar a fraterna pestilência,
Trabalhar até à exaustão,
Perder os dentes todos ou não chegar nunca
A ter dentes do siso.
Tem de conseguir ser esse fumo e cinza,
O  verbo tem de ter bebido o fel
Da sua própria impotência,
De ter sido reduzido
A um número tatuado na pele
Para, de novo, atravessar o arame farpado,
Tocar a terra
E conseguir que acreditem nele.
O verbo tem de aprender como nunca se esquece,
A boca rebentada pela febre,
O corpo ceifado por tifo, disenteria,
A alma ceifada, mas não destruída
E, depois, sim, destruída.

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

(Nuno - Jornalista/poeta)

Porque sou jornalista, sinto-me mais real, a minha escrita tem uma densidade dolorosamente real, é rugosa porque é a verdade, aquilo de que não se pode fugir, mas é preciso enfrentar.
E porque sou jornalista, é-me exigido que não sinta (tanto), que faça as coisas distanciadamente, como um actor, ou melhor, espectador do teatro brechtiano.
Talvez por isto eu escreva cada vez menos versos. Ou talvez por causa do maldito efeito que teve em mim o maldito poema de Yannis Ritsos, “Explicação Necessária”. Nunca nada que eu tenha lido teve tal efeito sobre mim, nem a obra do Pessoa, do Celan, do Larkin, do António Osório, do O´Neill, do Ruy Belo, nenhuma. Todas me motivaram para a escrita. Mas este poema, não. Aniquilou-me, secou em mim todo o desejo de escrever, lamentando amargamente que Ritsos alguma vez o tenha escrito.
Tenho medo daquele poema e devo habituar-me a ele, ao medo que ele me causa, e ao esmagamento.
O pior, e eu sei-o, é que, como boa literatura que é, o texto não se deixará reduzir ao hábito, terá sempre algo novo para me mostrar e maravilhar. E o que eu não quero é a maravilha que incinera tudo o que já escrevi.
Parafrasear o texto não basta, não serve, não me consola. Qualquer esforço, qualquer veleidade de imitação ou torneamento sairá gorada, nunca chegará aos calcanhares do original, deixará sempre aquele vazio de quem não disse nada e nada tem para dizer.

E sei agora claramente o que o Pessoa queria dizer quando afirmava: “....e é vã a obra toda.”

Nuno Rocha Morais
(...da cinza à rocha - notas literárias)

Poema de Yannis Ritsos- explicação necessária
Há certos versos - às vezes poemas inteiros -
que eu próprio não sei o que querem dizer. O que ignoro
retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar. Não interrogues.
Já te disse que não sei.
                                         Duas luzes paralelas
vindo do mesmo centro. O ruído da água
que cai, no inverno, da goteira a transbordar
ou o ruído de uma gota de água caindo
de uma rosa no jardim, regado há pouco,
devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,
como o soluço de um pássaro. Não sei que quer dizer este ruído; contudo aceito-o.
As coisas que sei explico-tas,
sem negligência.
Mas as outras também acrescentam a nossa vida.
Eu olhava
o seu joelho dobrado, como ela dormia,
levantando o lençol -
não era apenas amor. Este ângulo
era o cume da ternura, e o cheiro
do lençol, a lavado e a primavera, completava
este inexplicável, que eu procurei,
em vão ainda, explicar-te.


yannis ritsos
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. eugénio de andrade
assírio & alvim
2001


sábado, 18 de janeiro de 2020

Pela janela, entra uma brisa
Que deve ter feito parte de um corpo,
Vestígio de relentos, de uma vida
Que rolou sobre a relva de Maio
No Palácio de Cristal
Antes de se sumir,
Fulminada pelo canto do galo –
“Ainda há galos no Porto?”;
Mas rola, por enquanto,
Entre corpos  de amores anónimos, lábeis,
Domínio livre de movimentos felizes
Que agora haveriam de ser brisa,
Arbitrariamente brisa,
De súbito ferida
(“Tenho de ir”, repetia uma vida)
Pelo canto do galo, como então,
Quando a manhã se esclarecia
Num isolamento de tons
E ganhava forma a separação.

Nuno Rocha Morais
 (Anto – Outono 1999)

domingo, 12 de janeiro de 2020



O velho sentado em frente
Espera. Às vezes, pesca,
E espera, espera sempre.
A sua paciência erigiu
Grandes muralhas,
Apertou cercos, venceu inimigos.
E agora espera a sua pérola
Povoada de igrejas e bordéis.
O fato cinzento não esconde
O mandarim.
Não olha em frente, não precisa.
Conhece tudo como seu já.
Às vezes, ri-se baixinho,
Enquanto pesca e espera, paciente.
Espera pescar a ilha em frente.

Nuno Rocha Morais 
(Poemas Sociais)




sábado, 4 de janeiro de 2020


Trago a cabeça cheia de códigos, 
Trago outros em cartões.
São os odores, os toques de antenas, 

As secreções por que o sistema,
A grande mãe cega, me reconhece. 
O meu nome pouco interessa
Ou os carreiros que sigo,
Onde é a minha toca ou formigueiro. 

Estes números são os poros
Por que respiro, o sinal
Que me torna visível no sonar,
Que me abre portas que desembocam
Noutras portas e estas desemportam
Noutras bocas.
Não estamos tão longe de insectos pitagóricos, 

Tão longe de demonstrar a existência de Deus. 

Nuno Rocha Morais (Poemas Sociais)

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...