sábado, 29 de janeiro de 2022

Diário


Continuamos à espera de ordens.

Do inimigo, nem sinal.

Não interessa quem ganhou, quem perdeu:

Se a guerra acabou, queremos saber,

Queremos voltar. Mas, para onde?

Já não recebemos cartas nem reforços,

Já não somos rendidos.

Será que nos esqueceram neste fim de mundo?

Ainda vivos, já somos soldados desconhecidos?

Estamos cansados desta rotina,

Destes uniformes, destas armas,

Estamos cansados uns dos outros.

Só homens, só cheiro de homens,

Nem sequer uma árvore para nos lembrar

A presença de uma mulher. Nada.

As nossas almas desertaram há muito.

Nenhum de nós regressará herói.

Não vimos nada, não fizemos nada,

Limitámo-nos a esperar, enterrados,

E, entretanto fomo-nos apagando, diluindo,

Até se esquecerem de nós.

Não vimos nada desta guerra,

Provavelmente acabou há muito,

Provavelmente nunca se travou,

Mas poderemos algum dia dizer

Que lhe sobrevivemos?

 

Nuno Rocha Morais



sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

 Não pensaram que se pudesse ferir

E agora jaz ferida a pedra.

É preciso regenerá-la,

Mas o que não conhece a ferida

Também não cicatriza.

O seu sofrimento engendra

A noite, um uivo sem lobos,

Uma presença sem corpo.

 

Nuno Rocha Morais


sábado, 15 de janeiro de 2022

O Cão da Raça, o Poeta com Pedigree e o Leitor Deles


Enquanto os anos,

Agulhas finíssimas,

Te desviavam os trilhos,

Enquanto o pulso

Era ainda fonte de escrita,

Não te ligaram nenhuma.

Esperaram que morresses

Para investirem com segurança

Nas tuas Obras Completas,

A encadernação mais ou menos luxuosa

Do tempo que em verso te coube –

(Sim, verso couve,

Que plantam na estante –

Isto é, se tiveres sorte,

Se um relâmpago da moda

Te iluminar,

Se o raio de uma moda

Mamuda te acertar)

E quando comprarem as tuas Obras Completas,

Comprarão um cão da raça,

Com o devido livro de instruções.

(Não te esqueças, em anexo

Das tuas Obras Completas,

Junta um livrete de instruções.

Com muitas figuras.)

 

Nuno Rocha Morais


quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

 


Dias solidificados num hábito,

Num hábito a que chamam,

Segundo o habitual mecanismo das horas,

Amor ou sonho ou trabalho.

Um hábito a que chamam vida,

Tiquetaque dos passos,

Sempre os mesmos

Do sempre mesmo hábito,

A dormir para cumprir

O hábito de acordar,

Um hábito a que chamam vida,

Até terem um enfarte de regularidade,

Até chegar a morte,

Já um hábito,

O plácido ponto final

No requerimento do corpo,

Cumprindo a burocracia da carne.

 

Nuno Rocha Morais


domingo, 9 de janeiro de 2022

 

O teu corpo é matéria simples

Além do bem e do mal:

E não é o crime que das tuas mãos

Faz quasares.

E não é o teu nome indomável

Uma imprecação ou blasfémia.

E aquilo a que chamam leito envenenado,

A pacificação, o bramir,

Não é a impaciência infernal

Que sobe até às almas e tudo devasta.

Tu não és o grau último da perdição,

Não és o ribombar do apocalipse

Apenas porque o teu corpo é medida humana.

Também os corpos pesam o quilate do amor.

 

Nuno Rocha Morais

domingo, 2 de janeiro de 2022

 

Tanto tenho morrido para sempre

Mas ainda volto pelas portas entreabertas

Do crepúsculo

Pela luz pálida, cadavérica

Moribunda

A luz que me conhece

Que me acompanha pelas ruas

Onde sou leve como ninguém

Pois que ninguém me reconhece

E chego junto de ti

Venho dizer-te – Tenho morrido tanto

E é para sempre

Receio não ter-te amado até ao mais fundo

Da minha força e ela secou

Quase me desvaneço Falo-te

Pacífica mulher de Vermeer

Talvez fluir de outra vida já

Já não me reconheces

Sou agora outra margem

Só os mortos me reconhecem

 

Nuno Rocha Morais


Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...