domingo, 14 de outubro de 2018

O que vivo parece empenhado
Em destruir o que espero.
Mas alguma coisa espero
Para a minha morte,
Como uma espécie de riso
Final e póstumo:
Que ninguém sobre mim
Perturbe ervas daninhas
Ou, como elas, crianças
Que queiram vir brincar
Sobre e dentro do silêncio
Disposto sobre a minha morte.
Deixem-me ir com elas,
Dentro do meu riso –
É tudo o que espero,
Se além há uma vida,
Se além se pode esperar
Mais do que nesta.
E esse instante de riso
Não é pouco para a eternidade –
Nem menor quimera
Ou mais sábia loucura,
Perpétuo numa risada.

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Aviso


Acreditar na palavra? Porquê?
Porquê, se a sua aparência esmaga os sentidos,
Porquê, se a verdadeira palavra
Foge, aérea de voz em voz,
De verso em verso, inalcançável?
Porquê se a imagem
Que reflectimos na palavra
Nunca é inteira, nunca é completa?
Porquê, se na palavra o que dizemos
Se refracta e dissolve e perde,
Se a palavra é apenas o artifício navegável,
Um prelúdio do silêncio?
Ainda assim, afundamo-nos nas palavras
Bebemos-lhes a cicuta espectral,
Cremos e entramos nelas e perdemo-nos
Na tempestade de areia do seu esquecimento,
Em que de nós mesmos desaparecemos.


Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...