domingo, 28 de fevereiro de 2016

A lucidez é o acto de ver
Por entre o pó, a tosse, o lacrimejar;
Não há verdade,
O erro é construção
A sabedoria, desmoronamento.

Nuno Rocha Morais

domingo, 21 de fevereiro de 2016


A verdade é que prefiro não saber,
Sentir pode ser a pior das ingerências.
Prefiro fazer-me escasso,
Não comparecer, calar-me,
Estar apenas por engano,
Ser ignorado, embora custe.
Também eu não pergunto,
Muito menos falo comigo próprio,
Ignoro-me, prefiro gatos e plantas.
O silêncio absorve a perda
Para que eu não seja absorvido por ela.
Saio de manhã, está sol,
Não tento o contacto, nenhum contacto,
Ou a manhã fugirá, espantada,
Como apenas mais um dos seus muitos pássaros.
Diria que a terra se sente vazia,
Passada a obsessão de florir,
De multiplicar, a sede perpétua
De desmesura. Talvez assine os corações.
Disseste que o teu tinha muitos quartos
E deduzo que o amor por mim
Seja apenas mais um hóspede,
Mas um amor nunca é apenas
Mais um hóspede.

Nuno Rocha Morais

domingo, 14 de fevereiro de 2016

À hora de almoço, tantos afazeres.
Que dia é hoje? Expirou algum prazo?
É importante não querer nada,
Mas tendo de o desejar muito,
E hoje, por um qualquer extravio de calendário,
Sentes-te vagamente finado
Quando, afinal, é Dia de S. Valentim.
Sim, já sabemos tudo sobre retórica
Das convenções e comunicação comercial,
E nada muda o facto de ser
Dia de S. Valentim, o primeiro sem uma palavra
Dela, que, de resto, eu também não disse,
Parecendo estar dada a ordem tácita
Para se instalar o silêncio.
Resigno-me, sou doentio e secundário,
Talvez por isso seja hoje tão importante
Não querer nada, ainda que eu não tenha,
Por ser dia de S. Valentim,
Força para o desejar muito.
Passarei o dia a esconder-me do que quero,
A evitar nomeações, nostalgias, apóstrofes,
A deriva de um estúpido suspiro
Pode perder toda a minha determinação,
Na qual, aliás, não confio nada.
Passarei o dia a esconder-me, ciente
De que, ao fim e ao cabo, o desejo
Me encontrará sempre, nada a fazer,
Salvo suspirar, licito hoje sem querela
Porque afinal, é Dia de S. Valentim,
E respiro fundo, vagamente finado,
Cipreste e Novembro

Nuno Rocha Morais

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Rio-me de chorar muito,
Penso, que à força de esperar,
Fiz um buraco no céu,
Que pela minha persistência
Se rege o sol.
Rio-me por também eu crer
Na mais piedosa das mentiras –
A de que, ao fim, o sofrimento
Revelará o seu sentido
E, mesmo severo, admoestando
(“Homem de pouca fé”),
Abrirá as mãos, de onde sairá
A recompensa, a graça
Ou apenas um estado neutro
Que muito deve à felicidade –
A mais cruel das mentiras.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...