segunda-feira, 28 de janeiro de 2019



De novo a chuva balbucia
Na figura da janela,
Som, som, som
E os nervos do trovão rebentam,
Som, som, som,
Amplos relâmpagos,
Luz, luz, luz.

Regressa também a minha dor,
Alheia a qualquer tempestade,
A dor da vida que não me pergunta nada,
Que não me pede nada,
Que quase parece ver-me como 
Miragem da matéria.

E, de súbito, uma ternura plana
Refreia o gume desta mágoa:
O meu lado da dor valerá a pena
Se inundar o teu de flores,
Se eu te puder esconder da dor.

Nuno Rocha Morais

domingo, 20 de janeiro de 2019

Espero-te, vinda do fundo do silêncio,
Essa morte viva,
Espero-te enquanto ardo
Na tua imagem que envolve
O coração da música,
A travessia dos violinos,
A ave ferida do canto,
A tempestade que a si mesma se devora
E a si mesma se sacia,
A harpa que se estende
Como uma praia.
Espero-te na sonolenta calmaria,
Espero-te sendo silêncio.

Nuno Rocha Morais

sábado, 12 de janeiro de 2019














         A noite chega, nascem baldios lunares
Vejo-te afastar, caminhas para o carro
A manquejar de um joelho,
Subitamente pequena e frágil,
E eu morro noutra direcção.
O amor que já perdido levo em mim,
O amor pelos cafés em pedaços escondido,
Podia salvar dez ou cem vezes
Este mundo de todo o desamor,
Ou talvez não: também o amor é opinião.
A ausência avançou com a noite,
O teu cansaço poderia deter ciclones,
Mas esta dor não vencerá nada,
Não seria capaz de agitar uma folha,
E, sendo tão real, não é sequer um grão.
Caminhas para o carro,
Vou-me fechando com a noite,
Fechando e partindo, fechando e acabando.
O ar é de uma salsugem ferruginosa
E eis o que fica – inverno e cimento.

Nuno Rocha Morais

sábado, 5 de janeiro de 2019

Eu sei que não há rostos eternamente rectos,
Rostos eternamente planos,
Que lentamente o tempo deixa os seus sulcos,
Curvas das mágoas,
Certezas de paisagens esvaídas, concluídas;
Eu sei que todos os rostos
São meteoros sobre a matéria da pele,
Que a fonte das feições é fugaz;
E sei que lamentar o acaso do rosto
É absurdo, pois que no rosto envelhecido
É outro o desembarque da juventude.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...