domingo, 31 de janeiro de 2016

Da doçura na boca.
O fim último da terra
É a criação desta espécie de anjo
Que voga na boca
Anunciando o seu amor,
Um amor tão diverso
Em intensidade, tom,
Cor, forma, mas o mesmo amor
Reconhecível no sabor de cada fruto.
A cada fruto sei que terra piso,
O solo, o peso e a intensidade do sol
Que sobre ela houve em cada dia
Como a doçura destes frutos
Sempre soube de mim,
Embora nada soubesse de consciência.
E entrego-me ao crescendo de doçura
Da maçã, da cereja, do figo,
E sei que reconhecer esta doçura
É saber que estes frutos me conhecem,
Que nada há em mim que não esteja neles.

Nuno Rocha Morais

domingo, 24 de janeiro de 2016


Creio que existo menos:
Converti-me num antiquado código binário
Do desespero e solidão, incompatível
Em toda a parte como carne e osso.
Sou cada vez mais digitável,
Uma sucessão de palavras-passe
Que apenas levam a outras janelas
Que solicitam novas palavras-passe
Sem levarem a lado nenhum.
Estou em toda a parte, tenho muitos nomes,
Conheço gente da Austrália ao Canadá,
Mas nenhum rosto, nenhum rosto.
É isto uma vida em pedaços
Pelo mundo partida?
Desde que comprei o meu PC,
Tenho sempre as mãos e os pés frios.

Nuno Rocha Morais

domingo, 17 de janeiro de 2016

A mi madre




Agora, é só uma voz luminescendo,
A voz que sigo como sendo levado,
A voz onde outrora adormeci,
Sabendo-me a salvo, como agora;
Sigo o teu riso de colegial,
Troçando da minha pobre cozinha,
Aflorando, ágil, nugas, móveis, detergentes.
Agora, que te ouço, toda a distância é um instante,
A luz que vira dia dos limões,
Os domingos cheirando a assado.
Agora que te ouço,
Toda a distância é um instante,
Um fósforo que se risca:
O que é um país distante?

Nuno Rocha Morais

sábado, 9 de janeiro de 2016


Perguntarás, por certo, quem sou,
Quem fui e eu não saberei responder
Porque me terás esquecido.
Serei identidade dissipada,
O anel incompleto na viagem
Em torno de si mesmo,
Dirás um verso meu,
Dirás que pertence a um poeta morto
Muito antigo,
E eu buscarei nas páginas vivas
De poetas há muito mortos
Esse verso que nunca acharei.
Falar-me-ás da minha morte
Já acontecida.

Nuno Rocha Morais



Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...