terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Referência de vida

 
Era um destes dias de sol de limão,
Um dia de secura nos olhos,
De céu seco de aves que tanto amo.
A cada esquina, era o vento norte
Que dobrava os rostos.

Foi então que, na magia do acaso,
Ou talvez da chama voluntária
Ouvi as palavras prementes da ternura inadiável
Do magnetismo daquelas palavras,
Uma ave despertou as suas asas,
O ritual da indelével aliança.

E voou.
Depois outra e mais outra,
Aves que se tornaram céu,
Indo além do espaço –
Para o coração.

Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

50 anos da Libertação de Auschwitz / Birkenau (27 de janeiro de 1995)



Os russos chegaram a meio da tarde: 
Pouca gente havia para libertar.
Mas o horror que pairava, demo, 

Esse foi libertado e condensa-se,
Como uma monção de pestilência,
Sobre as nossas almas.
Algo de nós não pôde nascer, 
Algo nunca mais poderá florir:
O horror encarcerado na memória, 

Prolongando os gritos, o terror,
E, pior do que tudo,
O silêncio, o silêncio.
Anjo negro esvoaçando
Com as cinzas, o esconde.
Não o esqueçam, não o esqueçam. 


Nuno Rocha Morais (Galeria)

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Todos temos um Campos e um Caeiro



Não sou simpático.
Nunca fui simpático.
Não sei ser simpático.
Por isso, não me peçam para ser simpático. 

Nunca menti: não sei ser simpático
Por isso, nunca fui simpático. 
E a minha simpatia é essa: 
Não ter simpatia nenhuma. 

Nuno Rocha Morais (Galeria)

sábado, 8 de fevereiro de 2020

MODELOS


Ri, sorri, prova, usa,
Corre, salta, dança,
Tira, põe, despe,
Sobretudo despe,
Expondo castamente
A nudez comercial.
Aprenderam a graça das nuvens,
Não têm direito
À treva da tristeza,
Aos problemas íntimos e caseiros:
São perseguidas por salas em festa,
Por fotografias, amores infelizes,
São perseguidas pela luz
Que, inexorável, as corrompe
E envelhece, como afinal, a todos.
A luz que as recebeu,
A luz que elas apuraram
É a mesma luz que as vence,
Água sobre papel.

Nuno Rocha Morais (Poemas Sociais)

domingo, 2 de fevereiro de 2020

PREVENÇÃO RODOVIÁRIA


A toda a velocidade,
Passamos por fardos de carne,
Montículos sangrentos;
No momento do estouro,
Talvez não tenha havido sequer tempo
Para um miado, para um ganido.
Depois, a escuridão,
A carne abandonando-se a si própria,
Embora recuse desintegrar-se,
É uma forma já inútil,
De um sarcasmo macabro,
Que se derrama ignorando limites
Que apodrecem, liquefeitos.
Nada é estanque, em toda a parte
Há uma afinidade de destinos.

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...