sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Transição


Restará apenas escrever
A epopeia das galinhas brancas,
De como regressaram,
Vagamente ridículas,
Ao seu ovo no poente.
Talvez se julgassem eleitas.
Com um estrondo de pórtico,
Já cai de bronze, ao som do gongo,
O ponto final, presente de grego.
Restará apenas esburgar
Quanto foram de mofineza
Ou salvação
E se houve algo mais
Do que um estúpido estourar
De gente estúpida:
A fartar, vilanagem.
Por certo contarão as suas traições,
Entre o remorso e a vanglória
Enquanto miram, suspirosas,

O império empalhado a um canto da sala.



Nuno Rocha Morais




domingo, 19 de outubro de 2014

Verás os desvelos do silêncio
Sobre a dor que choras:
Quando partires para o longe exótico
Dos países de adormecer,
O silêncio há-de esquecer por ti tudo,
Todo o horror, toda a dor.



Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 13 de outubro de 2014



Pela poesia hei-de,
Não calar-me,
Mas dizer tudo por alheios lábios.
Direi tudo
E tudo me será perdoado,
Porque, embora seja culpado

Não sou o gesto de o ser.

                  Nuno Rocha Morais

domingo, 12 de outubro de 2014

Pressa


Com que pressa comecei então
A sair de toda a parte,
A extinguir, um por um,
Todos os meus amigos.
Agora, não tenho ninguém
Senão os meus mortos,
Que me trazem a sua lenta solidão.
Toda a memória se satura
Com imagens tuas –
O modo veloz como viravas costas –
E sucumbe ainda à tua pressa abrasiva
Que calcinou todos os nossos segredos.
Mas já não há pressa:
Qualquer tempo, todo o tempo,
É inútil recuperar

A vida que perdemos.





                                                Nuno Rocha Morais

Publicado nos Cadernos de Serrúbia - dezembro 1997

Nascituro: Uma genealogia

                                    “Meu pai, o açor.
                                      O avô, lobo.”

                                            J. Bobrowski

Do avô herdarei a sombra do lobo.
Do pai o altíssimo silêncio de águia.
Confio-me ao vosso sangue, nosso,
A próxima maré.

Nuno Rocha Morais








sábado, 11 de outubro de 2014

Poema publicado nos "Cadernos de Serrúbia" - Fundação Eugénio de Andrade

Uma criança continua a seguir-te,
Ainda não te perdeste dela.
Às vezes, pensas que se afogou na idade, 
Mas ela volta, primavera maldita, 
É uma ferida recidiva aberta,
Uma fertilidade dolorosa
No seio da terra putrescente,
Fatigada, quase extinta.
Ela volta, insónia ou incêndio,
Atira-te de longe o teu nome
Na alcunha mais malévola,
Onde a tua imagem é insuportável,
Atira-te o teu nome
Como uma pedrada.
E dói. E ela atira outra e mais outra:
Saem-te pelos olhos estilhaçados.
Não lhes chames lágrimas – não são:
São pedras, de uma outra dor.
Sabes que envelheceste porque ela volta mais vezes.
A criança nunca fala. Só atira pedras.
Outros lhe chamem o que quiserem –
Para ti, são pedras.



Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...