quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Cosmogonia

Não sei. Não me lembro.

A memória não enreda vultos,

Milénios domados pelo esquecimento,

Histórias anteriores a toda a História.

Mas, por vezes, imagino células do tempo

Que se agrupam em dias

E os dias são a primeira coisa criada,

A primeira resposta ao não haver nada,

Nem sequer o silêncio das existências.

E os dias começam os trabalhos.

Da luz líquida nascem as águas;

Da luz opaca, opressiva, a terra;

Da luz incandescente, o fogo;

Das estradas da luz, o ar;

E os trabalhos vão-se fundindo,

Povoando os dias.

Talvez tenha sido assim. Não sei. Não me lembro.

Existiremos, quando o nosso início

Mais não é do que figuras de sonho?  


Nuno Rocha Morais

(Poemas dos dias - 2022)

Este foi o poema de base da apresentação do livro Poemas dos Dias feita por Rui Santiago - "Cosmogonia"


domingo, 27 de novembro de 2022

A criança fantasia

 


Avô, tu disseste “Não é assim”,

Com todo o saber no teu bolso,

Mas eu gosto mais do mundo assim.

Gosto de dizer que a lua é a rainha do céu

Durante a noite,

E que tem um vestido amarelo

Com nódoas castanhas.

Gosto de dizer que a noite vem

Porque chovem uvas,

Uma imensa chuva de uvas.

 

Avô, não quero saber

Dos movimentos do sol.

Ou que o sol é um astro.

Não. Ele é o olho arregalado

De Deus, que é um ciclope.

 

Avô, tu sabes que eu cresci,

Mas eu gosto de ignorar os meus passos,

Fingir-me criança,

Para tornar mais leves

Os anos, que já se vão amontoando

Sobre os meus ombros.


Nuno Rocha Morais (Poemas dos Dias 2022)

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

 

Misturam-se os corpos, não se misturam as vidas.

Sente-se em cada corpo 

A tensão dos segredos,

A resistência das ânsias

Que, lucífugas, se refugiam

Na superior distância da inexpressividade,

Um autismo urbano.

 

O corpo a corpo da indiferença,

A força que atrai cada um 

Para dentro do seu próprio mundo.

 

Um homem carregado de embrulhos

Risonhos em cores berrantes;

Uma mulher que espreita a aranha de um relógio;

 

Cada um enfrenta sozinho a sua vida

Sem descobrir gente dentro dos corpos

Que o rodeiam;

Ninguém olha cada pessoa como merece

Quem olha as pessoas?


Nuno Rocha Morais

terça-feira, 1 de novembro de 2022

A visita

Chegou sem aviso e instalou-se.

Ao princípio, nada disse. 

Depois, começou a falar, pausadamente,

E, a sua voz, uma imensidão

Defluía, humilde;

Não mostrou o rosto,

Mas estava em tua casa

E estava em minha casa.

Partiu como veio, sem aviso,

E ficamos um em frente ao outro,

Na minha casa,

A um tempo abismados e cientes

Do amor a que cada dia mais novo em nós.


Nuno Rocha Morais 

(Poemas dos Dias - 2022)

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...