domingo, 25 de fevereiro de 2024

Contricção



Não, não serei o poeta

Das causas altissonantes,

O poeta sonhado pela eternidade

Para cantar as geometrias da beleza.

Não serei o poeta

De suspiros primevos,

Ou o poeta que renega a sua condição

E nela pisa para estar mais próximo

De algum deus.

Não serei o poeta-pássaro,

Canto de pétrea temperatura,

Imutável, firme.

 

Serei somente o poeta que em mim houver,

Talvez o do discurso soníloquo

Que nem assoma

A superfície da noite:

Serei se ele em mim for, 

O poeta ninguém,

O poeta que ninguém sonha,

O poeta que, dissolvido no homem,

É do poeta só leve travo.


Nuno Rocha Morais

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Devagar

Talvez os teus olhos tristes

Me acompanhem, me sirvam

Como fio de Ariadne,

Esses olhos em que existes

Até que eu encontre a casa

Suspensa na chuva.

Talvez os teus olhos me apontem

A casa soterrada no ar,

Porque um lugar

Encontra-se e constrói-se

Como se uma morte

Para se ficar:

Devagar.


Nuno Rocha Morais

domingo, 11 de fevereiro de 2024


A sombra do que vivemos

Tem a altura da nossa infelicidade,

Avaliamos a importância do que dizemos

Pelo volume do que omitimos.

Aonde o meu gosto pessoal vai,

Ela esquiva-se, resiste,

E a sua recusa é uma água-forte

Que se grava no rosto, nos gestos,

Falo contra esse último em mim

Que me chama e chama.

Esse último que é o meu próprio juízo,

Final e inapelável,

Quando nem o desespero é oponível.

Um lago aqui parece-te um erro da paisagem,

Um erro onde nos queremos demorar,

Ficar se isso nos fosse dado.

A fortuna mestiça que tudo contesta,

Tudo o que nos percute, compele

A neve de pétalas da magnólia –

O preço da primavera.

A noite peripatética,

O tempo que reflui sobre si próprio,

Que não se evade, mas se evola

E é também estas pétalas moribundas.


Nuno Rocha Morais

(Poemas dos Dias 2022) 

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024


Era um jovem caule da política:
Opiniões afiadas,

A ainda incandescência dos sonhos.

Falava com a voz de nuvens negras,

Baixas e aflantes.

Indignava-se contra os que roubavam,
É o primeiro passo para ser um deles.


 Nuno Rocha Morais
 

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...