sexta-feira, 26 de agosto de 2022

É por causa dos anéis que os dedos se julgam reais –

E é a oposição entre a luz dentro

E a escuridão fora que dá consistência

Ao interior, diluindo o exterior?

O lugar é uma conjectura incongruente

E o que é que realmente nos torna reais:

Uma dívida, um número de telefone,

O nome de uma lápide?

A irrealidade irá dar o assalto final,

Baralhar interior e exterior,

Num roque inesperado,

Tudo nos consome, mas na realidade

O que é que nos consuma?


                                Nuno Rocha Morais

domingo, 21 de agosto de 2022

Fragmentos


Como pessoa, sou o que puderam ver.

Como poeta, sou o que puderem ler.


Nuno Rocha Morais

A planta pendeu,

Em desamparo absoluto.

Nenhuma água poderá salvá-la,

Nenhum sol.

É só um fio de vida

Que em breve será cortado.

Morre tranquilamente,

Sem desespero aparente,

Mas morre, sabe que morre

E mostra-o na cor das folhas,

No modo como pende.


Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

 

Foram anos muito tristes,

Anos em que ganhei dinheiro

E não servia para nada,

Para gáudio dos moralistas.

Anos em que almocei e jantei sozinho,

Em que recusei todos os convites

Enquanto esperava por ti.

Já te havia perdido, mas não o admitias,

E, mesmo sabendo-o, estava-te grato,

Grato até pela agonia.

Foram anos em que provei

Todos os presumíveis sabores da merda,

Sem nada poder dizer:

A tristeza é um dever que não se partilha.


Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Mar


Enche todos os níveis:

Dura, é imenso,

Invade o odor,

Suspende de espanto o olhar.

Ribomba nos tímpanos, 

Gela o tacto,

Domina o gosto.

 

Nardo de firmeza e poder,

Sumptuoso, imenso,

Coroado pelo sol ou luar,

Não suporta a traição:

Às ondas que desertam,

Que pretendem fundir-se na areia

Sorve e doma-as,

Desvanecendo-as.


Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 1 de agosto de 2022




De novo, o Verão se lançou ao assalto de Agosto,

Trouxe as suas árvores, aves, horas,

Trouxe o seu rito, o seu ritmo

Indolente, a cidade quase não tem pulso,

Quase não tem tensão arterial –

Sossego de não haver vento,

Mas apenas o ar em bloco,

Bloco abafante, enraizado.

É Verão, quase todos deixaram

As suas mãos operárias na cidade

E lançaram-se na conquista

Das coisas conhecidas, mas já esquecidas,

O que é bastante mais difícil

Do que tactear um espaço envolto em desconhecido

São quase todos argonautas do verde e do mar. 

Querem purificar-se no longe,

Despir por um momento a pele

Que recebe fumo, suor, pó, cansaço,

Deixar para trás a insolubilidade das contas,

Que são, afinal, a própria vida.

É Verão e, por ora, a cidade foi domada.


Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...