domingo, 29 de março de 2020

Estamos ambos condenados a observar
E a ser observados.
O nosso inferno são estas margens
Separadas por águas negras,
Caudalosas, torrenciais.
Caminhamos ao longo das margens,
Cada um na sua, fitamo-nos
Como inimigos que não sabemos se somos,
Cientes de que nunca chegaremos
A lado algum, a palavra alguma.
De vez em quando, ao crepúsculo, a figura do outro lado
Lança-se às águas e logo desaparece,
E apodera-se de mim um terror.
Corro pela margem, esperando ardentemente
Ver o seu corpo afogado.
De manhã, vejo-o de novo diante de mim,
Na sua margem; repelido pelas águas,
E, de cada vez, parece odiar-me.
Nunca me lanço às águas,
Mas a verdade é que, de manhã,
Acordo sempre encharcado.
Lançar-me às águas para quê?
Não quero trocar de margem.
A figura do outro lado
Parece-me a mais perfeita indiferença.
Só temo que esse vulto
Alcance a minha margem
E se apodere de mim, dos meus olhos,
Que continuarão a ver
Uma figura na outra margem.
Não quero trocar de margem.

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 24 de março de 2020


Temo que, um dia, realmente,
 Uma criança se abeire de mim
E me pergunte o que é a erva,
Um urso, um lobo, um lince. 

Temo que, um dia, estas criaturas 
Apenas vivam no redil das fábulas 
E não passem de palavras
Que já não captam o mover de um corpo. 
Temo que, um dia, uma criança me pergunte 
O que são índios ou florestas tropicais,
O que são baleias ou golfinhos,
Castores ou florestas oceânicas.
Temo que, um dia, talvez já amanhã,
Ou talvez ainda hoje,
Acordemos sozinhos aqui,

Num mundo povoado apenas por nós,
Pelos nossos anjos ou demónios,
Num mundo apodrecido
Pela odiosa peste maiusculada
Do nosso bem e do nosso mal.

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

domingo, 22 de março de 2020

Os novos profetas
Não são diferentes dos antigos:
Esperam o apocalipse
Como uma espécie de salvação
Talvez apenas para poderem dizer
Que estavam certos.

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 20 de março de 2020

Canta, traz-me a serenidade
De uma qualquer serenata,
Um som qualquer, assobio,
Motor, dor que se esgueira
Por entre os lábios da contenção,
Algo que faça recuar estas paredes,
Canta ou conta fábulas,
Abre portas rangentes de mistério
E antiguidade nas lendas,
Canta ou rememora,
Que o brilho de uma evocação
Ocupe algum som,
Canta ou fala ou grita até,
Para que em mim a maré
De uma paz imensa desça,
A paz de um sonho de silêncio.

Nuno Rocha Morais 
                                             (para dar alguma alegria aos que sofrem)

quarta-feira, 18 de março de 2020

Hospital


Para aqui conflui a diária dor,
Convocada para os corpos
Rumor, presença, tacto
Nestes mapas errados de veias fartas
Que rebentam e gritam vermelhamente,
Recortados na solidão das suas chagas,
Desfiam os seus dias em preces.
Sós choram e sós morrem.
Aqui, Deus não os ouve – só os homens.

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

sábado, 14 de março de 2020

Felizmente, industriosos,
Arranjamos forma de não parar
Nunca para pensar
Nem, tão pouco, há mundo vivo
Que sustente o remorso
Por tanta criatura desaparecida,
Tragada entre erros e acertos
De julgamento.
Na nossa balança, haveremos
De sair sempre a ganhar,
Mas se algo se reergue ainda
Da extinção ditada pelos nossos pés,
Então só das pedras poderemos esperar
Que não tenham o coração
Endurecido contra nós.

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 6 de março de 2020

Meu coração de charco –
Quando terá chovido quando? –
Água que nada reflecte,
Turva, superfície estagnada,
Lamacenta letargia,
Subaquático fervilhar,
Meu coração de charco,
No teu ritmo salobro
Vem beber o verso,
Insecto breve temeroso.
Meu coração, apesar de charco,
Não te basta a sede
Do meu verso parco.

Nuno Rocha Morais

domingo, 1 de março de 2020

Dois verbos são o meu sangue:
Aceita e resigna-te.
Mas a válvula que os bombeia
É não, não, não.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...