quinta-feira, 30 de maio de 2019

Uma actriz [ B. B.]








Um mito, veja bem. Um mito.
É esta a crueldade que usam comigo.
Eu, este corpo que se afunda
Na sua decrepitude, sou um mito.
E obrigam-me a assistir, vezes sem conta,
A estas imagens de mim, jovem,
E perguntam-me se tenho saudade
Da minha juventude, que, sei-o agora,
Era já um crepúsculo – magnífico,
Diziam-me, mas já um crepúsculo.
E assim sou um mito e o tempo deve estar a rir-se muito,
Porque um mito é a máscara menos confortável
Para se morrer.
Repare bem, quero ser eu, só eu,
A escrever o meu obituário,
A fazer coincidir o meu canto de cisne,
Como soe dizer-se, com a notícia da minha morte.
Veja bem, fui bela e, agora, sou o oposto dela,
Sou, de ambos os lados do espelho,
A face e o reflexo, que só em aparência
Não coincidem, sou a fábula de um corpo
E a sua moralidade, que não é nenhuma,
Só uma lei natural.
Mas a minha beleza, dizem-me, não era natural,
Era inumana, era eterna.
Estavam enganados e aqui estou, a prova,
Ainda viva, e não sei se estou feliz
Por poder demonstrar-lhes que estavam enganados,
Mas aqui estou, prisioneira de um mito
Que eu própria desminto, embora tarde de mais.
Sou um mito pelo que fui.
Mas só agora sou real.
Não me reconhecem como essa jovem
Ou, então, como a degradação dela,
Como exemplo dessa lepra inelutável,
Dessa justiça tão justamente injusta
Que é o tempo, que nos cobra
O facto de o termos vivido.
Pois veja bem, sou a minha própria cilada,
Sou como o vento a sibilar na folhagem
Para saber que existe,
Para ser sombra nos caminhos.
Sou um mito a desmoronar-se num corpo,
Mas só agora sou real.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

domingo, 12 de maio de 2019

















À minha Inglaterra chega-se num verso de Larkin
E a primeira coisa que se vê,
Ainda antes das falésias brancas de Dover
É a rapariga de Cambridge de Ruy Belo.
E a graça dos seus gestos,
Semelhantes aos de Turner —
Leves e cristalizados nas telas,
E o seu canto, o seu inglês
Reverdecem os prados onde o verde
Apodrece em charcos de cinzento
E as cidades vão obscurecendo a luz
E a morte cresce nos dias.
Não procuro a melhor parte de mim
Para a rapariga de Cambridge em inglês:
Serão bastantes um olhar e um silêncio em português.


Nuno Rocha Morais (GALERIA -2016)

domingo, 5 de maio de 2019

Chego chorando sobre as minhas chagas,
Retorno aos teus braços,
Relembro a presença da luz.
Apago as guitarras chorosas
Que o dia fez desaguar em mim,
Esqueço as fendas de viver a morte
Por onde me vou esvaindo,
A presença cada vez mais silêncio.
Retornei, vesti outra vez aqueles velhos hábitos,
Habito de novo aqueles olhos felizes.
Sem estrelas, sim, mas com sonhos.
Regressei à minha infância de sempre,
A infância de onde nunca parti,
Mas que partiu de mim (parece que isso se chama crescer)
E depois tive que assinar cada dia
Com uma gota de sangue,
Mas agora voltei e adormeço no teu nome:
Mãe.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...