sábado, 26 de setembro de 2020

Os corvos não dão trégua
E querelam, negros.
De súbito, num país de chuva,
De árvores descarnadas,
Um canto diz onde está o céu.
Todos o procuram debicando a terra,
Mas ei-lo, imerso no ar de alumínio.
Num país de corvos
A única riqueza
É ouvir um melro.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

António Nobre

I.
Nas grutas do teu peito, a vocação
De um adeus outonal, da nostalgia
Da dor irrefragável, sem desvão
E, aí, o canto, como estalactite,

Moldava-se no tempo, nas imagens,
Na vida, que tu vias, te fugia,
Medida nos teus versos, nobres viagens,
E a dor que o coração ao ser permite.

O longe que a saudade fazia maior,
Nascia dos teus versos naturais,
Como eles jamais fossem escritos
Mas nascessem da terra, de uma dor,
De um horror que crescia e produzia
O feitiço do ritmo e melodia.


II.
Em ti, a vocação de um adeus outonal,
De outonal nostalgia,
De dor, mal outonal,
De um pranto, pétreas gotos desse canto,
Crescendo de um quebranto negro que te doía.

Vias medida a vida fugitiva, vida
Ida em marés de tempo,
No tempo, essa eterna ida,
Vida medida em versos de saudade e vento,
Leves de vento, leves como a infância ida.

                                       (A língua obediente
                                         Seguia a tua mágoa
                                         Até à voz do poente,
                                         Ao verso – a tua frágua.)

                                         No verso, poderosa,
                                         Esguia, a dor erguia
                                         O feitiço da rosa
                                         De ritmo e melodia.

Nuno Rocha Morais (Galeria)


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Em nenhum lugar, a morte é mais fácil:
A morte sempre horizonte,
Sempre presente, sempre prometida;
Os lugares, fugazes
Secam da magia que algum viver
Ou alguma memória lhes infundiu
Morrer na pátria? Ser sepultado na pátria?
Pátria é essa que em nós sonhamos,
E que, sabiamente, nunca enflora
Mais além do que o sonhar
É certo que os versos de um poeta
São o seu sonho de pátria,
A sua pátria de sonho,
Os versos do poeta são a sua sepultura,
O lugar infindo onde se deita
Para não morrer.
Por isso, onde o homem ancorou na morte,
Aí fique, matéria gerando matéria.
Ao poeta, deixe-se a voz
Que ninguém pode sepultar.

Nuno Rocha Morais

domingo, 13 de setembro de 2020

Vivo numa cidade tão pequena
Que não a compreendo.
A minha mãe julga-me feliz,
Mas feliz é apenas o momento
Em que, ao telefone, com ela,
Rio para esquecer todo o resto.
Preciso de alguém para cuidar,
De alguém que cuide de mim,
E nada tenho senão raiva e náusea.
Tenho outros sentimentos, creio,
Mas não os conheço.
Nesta cidade, apenas tenho de meu
A chuva que me espera
Quando saio do meu túmulo burocrático,
A chuva que perscruta o longe e o perto,
A chuva que é a minha alma à escuta.
Faço compras, o amor dói,
Tem dores de costas, bronquite,
Uma lama de náusea e raiva e corvos
E o arquejar de uma indiferença angustiada
Em que renasce, persiste e morre.
A fraqueza corre-me no sangue.

Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 10 de setembro de 2020


Amava as histórias de toda a gente,
Porque essa era a verdadeira respiração do mundo.
O terror era a ausência de linguagem,
O uivo dos lobos da serra
Quando andava à lenha
Ou o pai, ofegante e moribundo no quarto,
Com os pulmões soterrados pela mica.
Aos sessenta anos, quis aprender a ler,
Como se só assim pudesse sair da escuridão,
Fugir dos lobos. E, desde então,
Aproveitava todas as oportunidades para escrever.
Eram sobretudo, os envelopes de Natal,
Onde introduzia notas,
Apondo por fora o nome de cada sobrinho,
Numa caligrafia esforçada,
E era claro que, para ela,
Como para nós agora,
Cada um desses nomes manuscritos
Representava uma vitória,
Um afecto que, roubado ou indizível,
Ganhava a mais justa forma.
Aos oitenta anos, um ataque
Paralisou-lhe parcialmente a boca
E com dificuldade articulava consoantes.
A sua fala converteu-se num vocalismo vazio,
Grandes lagos brancos, glaciais, espaço informe,
Som por modelar; ou já sentido puro
Que só a custo podíamos alcançar.

Nuno Rocha Morais
(Poema do Nuno dedicado à Tia Catarina que o ajudou a criar e que hoje faria cem anos)

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Foi o tempo da guerra
Foi o oficio da morte
Era imunda a lembrança

Depois os homens voltaram
Perdidos filhos da morte
Nada lhes dizia nada
É desde então que se morre

Nenhum homem voltou
Perdidos no labirinto
Na autofagia do remorso
De terem voltado
De terem sobrevivido
Como se a morte fora
A única forma de cumprir
A dor que lhes competia

Nuno Rocha Morais

Excertos da "Gazeta Literária" publicada pela Associação de Jornalista e Homens de Letras do Porto


Mais uns retalhos do pensamentode Nuno Rocha Morais:

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Que importa enquanto vivos,
A nossa condição de mortos ?
Que importa que a ciência humana
Mais não seja que a reescrita de ignorâncias,
Um novo olhar iluminando-se
Em mais ampla cegueira?
Que importa que o amor tenha fim
Porque os corpos o têm?
Que importam coisas como o não,
O zero, o ninguém?
Que importam esses deuses que têm por ócio
Os nossos destinos?
Talvez tudo isto importe e eu o não saiba
E amargamente o vá aprender.
Mas o presente é o único tempo que existe,
O único tempo em que a alma alvorece.
O hoje é a grande lição.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...