quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Olympia

 Olímpica na sua nudez,

Esta mulher é uma declaração de guerra –

À moralidade burguesa, às regras da arte,

Aos olhos dos homens que fita e rapta

Com desassombro, sem pudor.

Causaram quase igual escândalo

O gato aos pés da cama, de dorso arqueado,

Como arqueado de desejo,

Como se nele encarnasse o próprio monte de Vénus.

O pé descalço e outro molemente calçado

Com a chinelinha de marroquim,

O camafeu sobre os seios, a pulseira de pingente,

Porque nunca uma mulher foi pintada assim,

Sem disfarce místico, sem uma roupagem

Que, apesar da nudez, ainda a revestisse;

Nunca uma mulher foi pintada assim,

Tão à flor de ser mulher.

 

Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

                                                                                                 (Para o Daniel Faria)

 

Vieste para dizer da magnólia em nós,

Para mostrar um modo à floração delicada,

Cega, e, porém, persistente.

Vieste para iluminar os sinais

De que somos passageiros –

Degraus, botões, casulos,

O chamamento da chuva,

O passo das estações.

Vieste, breve, discreto,

Apenas o tempo necessário

Para em cada mão, em cada concha,

Deixares uma semente de magnólia.

Espera. O abrir-se de cada mão

Descerrará o céu e o mar – espera.

 

Nuno Rocha Morais


quinta-feira, 11 de novembro de 2021

 Não quero que os meus filhos nasçam neste mundo

E não há outro senão este,

Que se vai estrangulando no seu próprio ritmo.

Queria que os meus filhos vissem e reconhecessem

Uma galinha, o mar, um ovo,

Uma árvore, o ar amplo

E não apenas o horror do fogo, do crude,

A violência do medo.

Oh, meus filhos, cujo ritmo está já em mim,

Que fazer para que possais respirar?

O nosso deus é um deus impuro,

Eu só posso perguntar, perguntar,

Porque todas as vidas são perguntas

E o que lhes responde é apenas a morte.

Oh, meus filhos, que pressinto já,

Como arranjar um lugar

Onde possais ser a liberdade

De uma árvore, de uma gaivota, do mar?

Não sei o que significa esta dor,

Se é um sinal maldito de tempos malditos

Se rumo para mais dor,

Porque a dor conduz sempre

A um golfo de dor maior.

Mas sei que não vos quero, meus filhos,

Num tempo em que vos chamem

Um número mais entre os malditos.

E se o que desejo para os meus filhos,

De tão simples que foi,

Se tiver tornado impossível –

Dias iguais à vida –

Então, meus filhos, ficai dentro de mim.

 

Nuno Rocha Morais


sexta-feira, 5 de novembro de 2021

 Um dia, vou-me sentar em Veneza,

Observar os pombos, beber uma cerveja

Enquanto espero pelo Ruy Belo,

Morto em 1978,

Ano em que a sua vida deixou de ser dupla,

Espero pelo Ruy Belo,

Só ele poderá entender

Esta estranha alegria que me envolve

Quando penso que vamos morrer,

Que somos efémeros e não eternos,

Como às vezes a dor parece dizer.

O Ruy Belo há-de vir, conversaremos

E não estaremos mortos nem vivos,

Vou mostrar-lhe um verso de amor

E ele perceberá o que digo

Porque ele sabe que a presença da amada

Nos transforma: de súbito,

Somos belos e todos nos vêem

E todos nos amam.

Tudo isto o Ruy Belo há-de perceber.

Os seus passos não vão afugentar os pombos.

 

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...