sábado, 30 de maio de 2020

Outra fala


“O amor? Não me fale de luxos,
Por favor. Não tenho tempo
Para pássaros e estrelas.
Não tenho quem me ajude sequer
A abrir um saco plástico,
Quanto mais para me encher o coração.
Se escorregar na banheira,
É possível que ela se torne a minha sepultura
E que só um arqueólogo me encontre,
Ou algum vizinho mais extremoso
Incomodado com o fedor.
E quem me suportaria?
Ou como admitiria eu em mim
Alguém mais presente do que eu?
Não, já dobrei essas ilusões.
Não me quero partilhar com mais ninguém –
Até porque não há nada a partilhar.
Acredite em mim, eu sei.
Tenho a idade da noite.”

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Actualizam a pena de talião –
Mil olhos por um olho,
Mil dentes por um dente,
A vingança em escala industrial.
E sonham com a justiça em que nada será esquecido,
Nada será perdoado,
Quimicamente pura,
Sem PH humano.

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

domingo, 24 de maio de 2020



As agulhas equânimes dos pinheiros,
As abelhas derrogadas –
Apenas se ouvirá, por entre a chuva,
A obstinação de um melro,
Sem súplica; nas esperas,
Os pardais recolhem-se
Junto de pernas humanas –
E todos esperam indiferentes,
Num terror que neutraliza o medo
O apocalipse ou a salvação,
Menos o melro, menos o melro,
Que confia nessa mulher
Que virá dos infernos,
Para que a primavera veja.

Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 20 de maio de 2020



Não me sinto cristão ou ocidental,
Não creio na teleologia
Do tempo e do espaço
Não venero o Ludo, o Ganges,
O Jordão, o Tigre ou o Eufrates.
Comprei a Bíblia
Como um excelente livro de ficção,
Poesia lírica e dramática
Que nos poupa o autor.
Não me sinto momentaneamente histórico,
Mas talvez haja aqui qualquer trompe-l’oeil.
Aliás, acredito mais na pintura
Do que em qualquer forma da palavra,
Porque nela há uma imagem da verdade
Qualquer que ela seja e não importa o grau.
Pouco importa até que a verdade seja
A menos demonstrável das categorias humanas,
(Não sou tão branco nem menos preto,
Não me confio à monogamia
Das cores e ritos e culturas)
Mas também não me sinto especialmente humano.

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

domingo, 17 de maio de 2020

Educação sentimental à maneira horaciana


Têm certa graça os teus amores,
Meu rapaz, as tuas ambições,
O que pensas que as mulheres pensam
Dos encantos que chilreias. Mas eu ouvi-as
Quando entre elas a conversa é gineceu –
És, no cume dos elogios, um castiço.
Meu rapaz, nenhuma te quer, nenhuma te vai salvar.
E, agora, vai chatear outro a pedir conselho,
Não sei se estou cansado ou se estou velho.
Carpe diem, enquanto tens os dentes.
Mas nunca será muito, ou grande ou sério
O que agora imaginas um império.

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 15 de maio de 2020


Se temos que morrer, que nunca seja ocultos,
Vendo a sombra da morte na sombra dos vultos,
Jazendo entre as paredes doentias do medo,
De nós, escorraçados por nós mesmos,
Vencidos, conformados – jogados, perdidos –
Humilhados no orgulho de quem nos humilha.
Se temos de morrer, vençamos a matilha:
Se temos de morrer, seja escolhida
A morte que mais honre a nossa vida.
Desta tenhamos feito a nobre luta
De ser, não menos curta, mas mais justa.
Se temos de morrer, assim morramos:
Sem suspirar sequer, como alguém que não pede.


Nuno Rocha Morais (Poemas Sociais)

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Breve história do fim do mundo


O céu começa a ceder, a dar sinais de putrefacção,
Vem mostrar os seus estigmas,
Um amor que se estende, vazio
Sobre a terra.
E há manchas avermelhadas,
Iniciou-se o derrame de outro mundo
E de outro tempo.
Em breve este céu irá quebrar,
Despedaçar-se algures.
Depois, não haverá sol, luz,
Frágeis como fósforos,
Por fim batidos pela esmagadora
Superioridade numérica e de massa
De nuvens e invernos.
Por fim, o inverno de calor sufocante sujeitará
Céu e terra aos seus ditames.
A última palavra será oferecida
A uma estrela cadente,
Que não a aceitará.
A última palavra pertencerá,
Claro, à podridão.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 11 de maio de 2020

                              
                                           A Garcia Lorca

Falavam-te da morte e vias os outros morrer,
Mas pensaste que a terra não teria força
Para apagar o viço da tua vida.
Nos teus poemas, a Espanha era sol

E era oliveiras e laranjas e manhãs morenas
E raparigas de risos rútilos.
Mas, depois, o sangue ancorou e ancorou no teu nome –

Foi o silêncio que entrou em ti
Na forma de um corpo caído.

É o teu nome que vela,
O nome ao qual ainda regressas, 

Como se nunca tivesses morrido: 
Cada vez que uma voz vibra
Um verso teu, entras
No teu nome jamais derramado. 


Nuno Rocha Morais (Galeria)

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Duas visitas à morte

Em certa manhã cinzenta,
Visitaste Verdun –
Como se patinhasses sobre vísceras.
E em outra manhã idêntica,
Trajando a mesma luz cendrada,
Como parecia impor-se,
Visitaste Auschwitz.
Passaste a ter horror de comboios,
A tua saliva fez-se pó.

Nuno Rocha Morais
                                                                                                                       

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Como a voz de um sortilégio, segues estas mãos,
A sua nostalgia de ser dança
Que, sedosamente, se converte em dança
No teu cabelo, nos teus ombros, nos teus lábios.
Só para ti, repara na leveza destas mãos,
Pousam sobre os teus ombros como a lua,
Com o passo da lua, e não sabes bem
O que isso quer dizer,
Mas consegues senti-lo exactamente.
E vê como guiam a luz cega no dia
Iluminando escalas e volumes mais escuros.
Estas mãos tocam-te e delas provém
O que te regenera num sopro,
Como a doçura a alvorecer dentro de um fruto,
Como uma metáfora ingénua
Que sobrevive à inteligência e se consuma,
É então o teu verdadeiro rosto que aceita
Comparecer no espelho e não apenas feições dispersas?
É agora , por arte dessas mãos,
Que a tua existência é mais do que pigarro e prurido,
Mais do que manhãs onde o único sinal de vida,
Vindo de nenhures, é uma sirene de nevoeiro?
E agora admitirás enfim,
Sob o céu aberto e o mar fechado,
Que não estás assim tão pronto para morrer?
Do teu coração, não encontrariam pontas de flecha,
Mas pó de ouro ou luz em pó
E talvez fragmentos de tábuas contendo
Uma misteriosa receita de hidromel – ou sangue.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 4 de maio de 2020

FERNANDO PESSOA

 
Da poesia, um templo alimentado
Pelos ritos do segredo,
Herdeiro das chamas de Elêusis.
Sepultados em ti, múltiplos cursos
E cada um dos teus nomes
Era uma forma de ausência,
E multiplicavas a tua solidão
Em solidões diversas.
Que nome dar-te então?
Talvez o de um deus
Recomeçado num homem.
E dos deuses, de que apenas conhecias
As sombras sobre os destinos,
Buscaste a exacta forma.
Buscaste a resposta para a eternidade
Sustentada em mínimas formas fugazes.
Aprendeste que volúvel é o desejo,
Que volátil é o tempo do homem,
Que mais alto que o verso
Enredado na escrita
É sempre o verso por escrever.


Nuno Rocha Morais (Galeria)

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Eu corria atrás da música,
Ela vestia de branco
E as orlas do seu vestido
Eram espuma, espuma.
Se a perdia, ela fazia-se ouvir
No espesso mel de uma flauta,
Som que me aspergia
Como fio de água
Em sede inchada.
A música iniciava-me,
Eu corria atrás dela,
Da sua textura fina,
Era branca, branca estrela
Exilada nas águas do vidro;
Eu corria atrás da música,
Perseguia-a como um fauno,
Num cego morrer,
Num alto despenhar-me.
A música fugia
E enleava-me nos seus anéis,
Fugia e desejava-me,
Fugia e chamava,
Chamava sempre, sempre,
A música em mim vitrificada.

Nuno Rocha Morais 

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...