sexta-feira, 26 de junho de 2020

Estás morta, realmente morta?
O teu corpo, que agora parece levitar,
Tão leve que a mais pequena brisa
Poderá arrebatá-lo num capricho –
Este corpo é o teu sarcófago?
Ou vais ainda levantar-te,
Sorrir-nos com malícia enternecida
E chamar-nos impostores
Como quando éramos crianças?
Porque é por ti, para ti,
Que o silêncio murmura estas vozes,
Num preito ciente
De que, se estás realmente morta,
Embora haja tanta gente,
A humanidade continua, é certo,
Mas mais rara, e mais rarefeita
E menos preciosa.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Politicamente correctos




Entre dois fogos, estes salvam-se sempre:
São os devotos de uma viscosa equidistância
E  nas entranhas têm apenas uma falsa temperança.
Aí estão, constituídos árbitros de tudo,
Pairando acima de erros e paixões
À força de sangue frio e fogo lento,
Em nada diferindo dos abutres,
Salvo na máscara que usam.
Estes são os que esperam, assépticos,
Estando ao mesmo tempo com a maioria e nas minorias.
Compreendem tudo sem jamais incorrerem em nada.
E como praticam a arte da meia-verdade
Isenta da meia-mentira inerente.
São estes que tentam mediar o fogo com o fogo
Para não contrariarem o fogo:
Como incham de tão razoáveis.
Se pudessem, certamente aboliriam o ponto de ebulição
Por entenderem desnecessária a exasperação da água.

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Abordagem à laranja


De todos os frutos a laranja:
Tão tranquilo era o cansaço
Envergando um corpo
Como vestes pesadas;
Mas, então, a laranja:
Come-se o fogo vivo
E sumário, desce
Conhecendo os desvãos de um corpo;
Todas as saídas, todas as soluções
Fossem assim, tão pouco enfáticas,
Tão humildes.
O cansaço e outros vendilhões
Saem pacificamente,
Sem a veemência do látego.
A laranja é o fruto mais próximo
De uma salvação objectiva, directa,
Pelo regresso à vida.


Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 18 de junho de 2020


Ao chamarem-lhe Dona Poesia
Imaginei-a com quatro filhos,
Com o marido brigão que tem por hábito beber,
Camionista ensebado que a espanca;
Imaginei-a de avental gorduroso
E lenço de cores berrantes na cabeça
Onde moram lêndeas que não possuem
Contrato de arrendamento.
Imaginei-a como mulher-a-dias,
 De quem o patrão abusou
Quando ela esfregava as escadas.
Vejo esta Dona Poesia todos os dias,
Subindo e descendo as ruas,
Vazando de cansaço,
Rumo ao crepúsculo.
Mas não servia para um quadro de Lugres
Ou para um verso cegamente clássico.

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

domingo, 14 de junho de 2020

Canto das Áfricas


Ecoam os tambores  dos planetas
No firmamento que emergiu
Da profunda vontade e sacrifício.
Em exóticas árvores, os frutos
Pairam puros, mais claros e mais límpidos.
Afogam-se de tribo em tribo as lanças
Não na pele – no peso de outros tempos,
Cujas águas translúcidas revelam
Corpos negros que dançam como irmãos.
O ódio guerreiro jaz sepulto no ar
Onde, alados e soltos, sobem cânticos.
O fragor da batalha é agora abraço.
Da lonjura dos tempos e dos homens
As antigas deidades são chamadas,
Oprimidas em peitos oprimidos,
Pés delirantes chamam a nova África.
Mãos que outrora empunharam armas e ódios
Clamam a Phenix Africana e a Foice.


Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Poema da voz

 
Gente de voz enovelada,
Quase avalanche, voz como verdura
Sufocada em pedregais,
Voz entreaberta, granítica,
Gente da voz como a manhã transmontana
Nos frios prumos do Inverno,
 Gente com a voz, às vezes fome,
Mas sempre orgulho, sempre altivez,
Esta voz fundida entre o Atlântico,
A secura, a dureza, as fragas,
Os montados ardendo,
Voz parcimoniosa como as  árvores na paisagem
Do Alentejo ou Algarve
Na gravidade do Verão,
Voz portuguesa, que desce nos rios,
Sobe nas alvoradas, penetra nas noites,
Voz a que as estações respondem,
Voz da gente que muitos renegam ser,
Voz com um sotaque por sombra,
Do Minho, das Beiras, do Ribatejo,
Voz insular, africana, oriental
Sotaque que é coroa
E não peso de uma vergonha,
Voz que perfaz o rosto dum povo,
Da emoção, do vinho,
Voz, memória das velas,
Voz, espaço também de amor,
Ou choro ou cantos,
Voz que possui faces de cortiça ou azeite,
Voz que é o trânsito
Da verdade que é um povo.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Presença


Não me chores, não me chores nunca,
Nem sequer quando, uma tarde,
O caule da minha vida se inclinar
E eu me esvair da minha presença:
Não me chores, nunca, nunca –
Em ti me deixei e a morte é ilusão
E a minha morte foi iludida:
Levou o que nada importa,
O eco fugaz das leis da matéria,
Mas eu em ti me deixei, aí sou raiz,
Como o vento do tempo leva as coisas,
Fazendo-as passar,
Sendo esse passar parte do ficar das coisas.
Quando morreres não temas:
Enlaçada comigo, na matéria do tempo,
Seremos essa presença que o seu nome esquece,
Essa presença que tem por rosto a ausência,
Seremos, assim, como ausente parece o tempo.

Nuno Rocha Morais

(Meu amado filho, fico à espera do nosso reencontro)

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Compêndio


Ao fim e ao cabo, é suposto ser esta
A grande lição da vida,
Segundo a qual, ferozmente civilizados,
Nos devoramos e esfacelamos
E dos nossos restos
Fazemos a vida toda.
Cada vez menores,
Vemos cada vez maior o passado,
Um fio ténue de presente
E o ocaso alberga todo o futuro,
Mais e mais difusa
A possibilidade de todas as manhãs
De todos os caminhos por haver.
Só o amor unificaria os nossos restos,
Erguendo-os em uníssono,
Só o amor nos salvaria, só o amor.
E, contudo, já não restam neste mundo
Pasárgadas por onde possamos ir embora,
Onde sejamos amigos dos reis,
Onde tenhamos a mulher que queremos.
Só o amor, de céu muito azul
Ou nublado, só o amor
Nos salvaria neste grande suicídio –
A lição da vida.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Nada muda a solidão
Em lugares importantes,
Onde as histórias são espessas,
Omnipresentes, sensoriais,
As mesmas tristezas dormem,
Como cães, ao sol.

                                                           Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...