domingo, 31 de maio de 2015

ring ring ring ring ring Catholic bells !» W.C.W

Domingo num país distante                     .
Não falo a língua,
Mas, de súbito, ouço sinos,
Sinos por toda a manhã,
Sinos de igrejas que não descobri,
Ocultas durante a semana.
Não sou católico, mas é domingo
E por fim eis uma língua
Que posso entender:
Sinos, sinos, sinos.
E assim chegam até aqui os meus lares -
Posso ouvir os meus vivos
E, sobretudo, os meus mortos
Nestes sinos, na alegria destes sinos.
Não sou católico, mas ouço-os catolicamente
Porque os meus mortos morreram
Aconchegados na sua fé
E creio que a agonia
Lhes foi menor por isso.
Ouço-os agora nestes sinos,
No gáudio de sinos, revogando
Martírios, fogueiras, cancros.
Os sinos brincam, como cardumes,
Misturam-se com pombas, corvos, almas,
E são como um aceno dos meus mortos -
Que chegaram bem, que valeu a pena,
Que é tudo verdade.
Ámen.


Nuno Rocha Morais



terça-feira, 26 de maio de 2015


Gostaria agora que fossemos velhos,
E velha tu, junto de mim,
Passando a mão pelas dores
Que por fim foram douradas,
E que se tornaram parte da carne.
Gostaria de olhar para o teu rosto
Sulcado por muitos tempos
E ver nele, quase completa,
A minha vida.
Passou a estridula adolescência
Do corpo, do desejo,
Mas algo da alegria dura para sempre,
Mesmo se a chama se inclina,
Um pouco melancólica.
Abdicando do tempo, não da experiência. –
Se nos fosse concedido um absurdo.
Finalmente aqui estão duas vidas
Que, uma na outra, sabem algo sobre a vida.
Fica. Sem ti, terei vivido
Como alguém que não foi convidado.



                                                                                 Nuno Rocha Morais

sábado, 16 de maio de 2015

Dieta Mediterrânica



Os domingos cheiram a assado –
O meu passado gosta sempre de falar no presente  -
A mãe levanta-se cedo –
O meu pai e a minha mãe
São figuras de alegria, de riso,
Tal como muitas das presenças invisas, fantasmas,
Que me criam ainda –
Deita o azeite na terrina,
Depois o lombo e mais azeite sobre a carne,
Que escorre movido por uma espécie de ternura –
E depois as batatas velhas
Que a minha avó encerrava,
Em jeito de ouro inca, em três leiras
E distribuía depois pelos filhos,
Herança, transmissão de sangue.
E as oliveiras do quintal
Amamentavam-nos com um azeite muito ácido
E dos outros avós, limões e ovos.
É assim na minha família
A dieta mediterrânica.


Nuno Rocha Morais





domingo, 10 de maio de 2015

Cresce dentro de mim, despercebido.
Maternalmente, alimento esse estame
E o hóspede usurpa o códice de cada célula,
Que sujeita ao assédio da sua fome.
É uma omnipresença que se torna carne,
Como um destino, avatar exacto, matemático.
Vegeta e mineraliza.
A sua liberdade estende-se, ilimitada
Até onde vai o meu corpo.
Cresce, fetal, no seu incunábulo,
Cerra os pequenos punhos
Até que tenha força bastante
Para ser dor, gnose, nome – cancro.



Nuno Rocha Morais

sábado, 9 de maio de 2015

Certidão de nascimento



A folha de papel que tenho à frente,
Lavrada pela mão mecânica
E indiferente de escrivão, sou eu.
Nela sem emoção alguma, soa
A meia-noite e quinze
De um dia trinta e um de Dezembro.
Mas já estão alguns nomes
E entretanto esses nomes cresceram
Como trigo e encheram-se de amor
Ao crescerem comigo, são mel, cera, tecto.
Como um portulano, esta folha
Exibe as conjunções de vidas
Banindo o arbitrário do humano.
Não podia ser senão assim.
Mas a letra de máquina ignora tudo.
No entanto, esta folha de máquina sou eu –
Com duas gralhas, mas sem erros de ortografia,
E isto deixa-me tranquilo.


Nuno Rocha Morais 

domingo, 3 de maio de 2015

Mãe



A mãe dizia-lhe: o que não vires,
Escreve; o que não puderes,
Escreve. O que não escreveres
Será o que realmente viste e pudeste.
Agora sobre o pórfiro do céu,
Recomeça com aquilo que começou,
O barro mais elementar
E o leite mais necessário
Até ao fim – as palavras da mãe,
Agora que todo o outro amor é nada
E se recusa a abrir,
Tantas cidades e partida nenhuma,
Num abandono ainda quente.
Em pensamento, a mãe vem lamber-lhe as feridas,
Depois, talvez fique de novo o voo aflito
Perante demasiado espaço
E por toda a parte se ouça, ardente,
O arco sussurrante de uma voz –
Vem morrer –
Mas, se cair, há-de recomeçar,
Repetindo, repetindo sempre,
A única palavra que o salva: mãe
Desde o princípio, contra o fim.


Nuno Rocha Morais










Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...