terça-feira, 27 de junho de 2023

Do cromossoma cedo o poema

Enflora na voz

E logo eu lamento tê-lo perdido

Pois que nas palavras 

Ele se perde de mim,

Já não tendo criador

Mas criando-se.

Os poemas resultam da necessidade crónica

De perder os dizeres que em mim erram.


Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 22 de junho de 2023


Sou, às vezes, a última hora de um homem
E preparo-me para morrer

Encostando ao queixo de adulto

Joelhos de criança

Quebrada por fábulas vazias –

Casas abandonadas,

Pessoas mortas,

Amores ínvios.

E algo em mim pede:

Desiste, por favor, de existir,

Ignora a minha fome, a minha sede,

Leva-as no fogo que se extingue,

Na minha lava que arrefece.

Mas o caminho para ti,

Ainda que nada de ti se adivinhe,

Continua. E eu continuo. 


Nuno Rocha Morais

domingo, 18 de junho de 2023


Estar longe, muito longe,

Suspenso em qualquer instante,

Em qualquer hora imóvel

De um dia feriado,

Estar atado a uma estação imperfeita

Que os lugares renegaram

Para renascer...

Estar longe, muito longe,

Num sono espesso, austero, cru,

Inatingível à escalada dos estímulos,

Adormecer como as pedras,

Ser, como as pedras,

A forma da distância ou alheamento,

Adormecer longe, muito longe

De forma que quando me arrancaram

Às entranhas do sono

E me perguntassem quem sou e onde estou,

Eu não soubesse responder.


Nuno Rocha Morais 

quinta-feira, 8 de junho de 2023

 


A morte em si não é terrível

 Pois que se cala dentro de si própria.

 

Terrível é o reflexo das suas águas

Nos rostos dos vivos,

Contorcidos de choro e dor,

Mãos tornadas extremos da angústia.

 

São calmos os mortos,

Abandonados em si,

Transporta a dor,

Vencida a morte,

Que apenas dura um instante,

Além da morte, estende-se o inominável.

 

Não a morte não é terrível:

Terrível é a reacção da vida à morte,

Terrível é a vida confrontada com a morte.


Nuno Rocha Morais

(quinze anos depois da tua morte, tento procurar consolo, nas tuas palavras, para esta imensa saudade de mãe)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

A distância ignora o céu,
Posto que ao fundo da distância

Está apenas renovada distância

E não o céu.

Como aventureiro na distância

O céu busca,

Também eu demando a isocronia

Entre quem me sinto

E quem me penso.

Como o rio que igualmente se reparte

Entre duas margens,

Dois diversos silêncios,

Também eu, na nudez do meu centro

Me reparto entre dois inimigos –

Sou como quem combate.


Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...