domingo, 26 de novembro de 2023

É o nosso primeiro crepúsculo.

Sobre o mar, a noite começa a ser

Uma espécie de possibilidade.

A tua mão escreve com as ondas 

Nervosos postais,

O teu cabelo esvoaça ao encontro da brisa.

Juntos aqui, junto ao mar,

Quem é cada um de nós,

A que outro se mistura,

Com o ocaso, a brisa, o rumor?

Continuas a escrever.

Em mim pousa a profunda calma do mar,

Há feridas antigas que voltam para dentro,

E desaparecem, não deixando sequer cicatriz.

Ouvi-te realmente dizer

Que esta é a paisagem de seres feliz?


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022)
 

domingo, 19 de novembro de 2023


A alma é inconveniente,

Põe os pés onde não deve,

Diz o que não pode,

O resultado és tu, multiplicado,

Dividido, despedaçado, exponenciado

Em traições que cometes

Sem muito bem as explicares,

Mas és tu. Cabe-te encontrar

Sempre novas coisas a perder,

É assim que vives para não ficares

Completamente vazio.

Hoje, quem morre na autobiografia

Já não és tu, conseguiste ainda escapar,

Mas só ainda. Aproveita.

Depois uma fruteira, uma mesa de vidro

Baça de tantos riscos

E o teu rosto. Quem pensas que és

Para julgares que Deus te ignora?

A náusea, a náusea, como é moderna,

Como chega já a ser filosofia,

A enviscar a carne, os dias,

Que privilégio, a náusea.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022)

domingo, 12 de novembro de 2023

A chuva traz o norte

E sinos de narrativas tímidas,

Fulgentes aos sentidos insensíveis.

A noite atenta na gaguez das ondas

E o sal traz pequenas garrafas de mistérios,

As algas albergam enigmas.

Nos rostos dobrados, rostos duplos,

Que urge domar,

Nos objectos, uma vida imóvel,

Mais uma vida escrita com pó.

O poeta tem de ouvir,

Decantar cada coisa no silêncio

E depois cantar,

Tecer metáforas

Como quem tece janelas,

Como quem ergue a paisagem

Onde a luz é um enigma.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022) 

domingo, 5 de novembro de 2023

Venenos

O corpo habitua-se a certos venenos

Inoculados pelo espírito,

Mas não sofre menos por isso:

Palidez, sangramentos, sezões,

Ardores, convulsões, náuseas, asfixia.

Deixarão algum dia de fazer efeito

Uma secreta livraria em Londres,

Um hotel em Lisboa,

A luz nervosa e tensa do Porto,

Uma fotografia em Florença?


Nuno Rocha Morais

(poemas dos dias 2022)

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...