sexta-feira, 24 de março de 2023

 A conta.

Os números que recusam a placidez (do certo,)

Desencontrados, vagabundos,

Os números insones que fiam as longas horas

Em que se pensa neles.

É só uma conta, uma só,

Que representa, no entanto, todo o desassossego,

Não aquele do Bernardo Soares,

Deambulante nos seus horrores metafísicos,

Mas o desassossego com que o dia se levanta

Do seio da sua noite

Para nos apresentar mais outra conta,

Logo que esta esteja resolvida.

A conta.

Palavras a Deus. E Deus dá-nos também

Uma conta para resolver.


Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 20 de março de 2023

Árvores

Mudam sem nunca se esquecerem

Do que foram, do que serão

Do passado que voltarão a ser

Reencarnando-se em si mesmas, 

Folha por folha, sem repetição,

Em cada anel somado ao tronco.

Temem tanto a primavera como o outono –

Não temem na sua tolerância tenaz,

Na sua constância consciente e desconhecida.

Agora, são um animatógrafo 

De folhas, de pássaros, de ventos menores.

Mudam, mudaram, voltarão a mudar,

Sem nunca se perderem,

Inteiramente conscientes

Na morte e na vida.


Nuno Rocha Morais

domingo, 12 de março de 2023

Regras

            O teu tempo trazia-me

Pela mão e o tempo de ti

Iluminou-me tão pouco.

Vence quem chora?

E vence o quê?

Caminho sobre a falésia,

Mata a cortar.

A minha vida procura,

Agora, ser a tua.

Que farias, que farias 

Sobre a Falésia?

Duvidarias do voo

Ou conseguirias voar

Mesmo crendo – porque é preciso –

Mesmo crendo em cada pedra?


Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 6 de março de 2023

O verso do verso: Os versos nos versos

 

Que terei eu lido de quanto li?

Que sei eu dos complexos mecanismos da chuva

Ferventes na terra fértil ou até estéril?

Sei apenas que escrevo por rumos

Que me chegam de longe, muito longe,

De milénios de memória insciente.

Sei apenas que escrevo como quem desenterra

Alguns instantes de corpos metamorfoseados,

Como quem ouve um silêncio conhecido

E povoado de outros silêncios

Possuidores da ciência de um discurso

Erguido no sussurro do próprio silêncio.

Mas, quem leio quando me leio?

Quem se reflecte naquilo que escrevo?

O meu verso nasce de uma encruzilhada,

Nasce de um passado e de um presente

Carregados pelo meu nome.

Sei que a minha boca é um pêndulo

 E que as pegadas nas palavras

Só aparentemente não existem.

 

Nuno Rocha  Morais 


quinta-feira, 2 de março de 2023

 Março é o carteiro da cor.

Inúmeras manhãs de inverno

Depositadas nos braços descarnados das árvores

Vão amadurecendo em verde.

Os pássaros trazem traços

Perdidos que estavam entre a bruma.

Um rasto de rostos perdidos ao longo dos meses

Regressa – agora as árvores têm rosto.

Nas praias vão-se apagando o furor

E o mar doma enfim a morte.

Março garatuja os primeiros dias brancos,

De Março renasce o meu coração.


Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...