terça-feira, 28 de setembro de 2021

Retrato

Culturista, cultista, analista

Inveterado, budista, vegetariano,

Praticante de ioga, iniciado

Em inúmeros mistérios,

Anglófono militante, porém purista,

Revelando na fala um esmero

Palatal e ápico-dental,

Probo, apaixonado, emotivo,

“Bom no bom sentido do termo,”

Activista de todas as causas nobres,

Lido, culto, versado, sensível

A todas as manifestações

Do “eterno voo da arte,”

Clássico, romântico, moderno

Mas com um toque de conservador,

Viajado sem nunca incorrer no turismo,

Essa “praga”, ousado, curioso,

Conhecedor de vinhos, charutos, mercados bolsistas,

Generoso, desportista espiritual,

Sonhador realista, amante terno

E incansável – libera nos, domine.

Pobres diabos, que se alimentam

De pose e ar, de pose e vento,

Órfãos, mártires, heróis,

Campeões de tudo,

Vitimas de invejas,

Almas perpetuamente espoliadas,

Cavalheiros até aos mínimos espetados.

 

Nuno Rocha Morais


sábado, 25 de setembro de 2021

Visão


 

 Nem céu nem terra, só mar e luz,

Como asseveravam os prospectos,

E a solidão alta de uma mulher

À beira-mar. Não pensa em nada.

Dentro dela, só este mar e esta luz.

No hotel, tudo ficou na perfeita ordem

De gavetas pacificas, do armário,

Felizes os postais já escritos,

Tudo perfeito nas escalas e proporções,

A compostura resistiu ao verde hiperbólico

Do pequeno país tropical

Com dupla personalidade.

Não pensa em nada disso a mulher à beira-mar.

A sua calma converge para uma harmonia

Histriónica, ocultando uma desordem unânime

A cuja vontade responde o mar,

Com correntes que puxam a mulher,

Areias que vão traindo a serenidade.

Nada resiste à vontade maior clamando do largo

No dorso de um instante, a mulher cai,

Levada na onda silenciária,

Reconhecendo na areia turbilhonante,

Negra, a matéria última de dias, noites,

Um túnel até ao seu próprio pensamento,

Longínquo, tão ao largo.

E, no interior da onda, no dorso do instante,

Percebe que talvez não tenha agradecido tudo

E a sua vida surge-lhe necessária, mas ausente,

Não há ninguém, ninguém que a resgate.

Então furando a onda, desce a mão,

A mão que a puxa para cima,

Para o céu, para a terra,

Para onde a sua vida a espera,

De pé, à beira-mar.

Enquanto recobra o fôlego,

A mulher procura um rosto.

A quem agradecer a mão:

            Olha à volta e não há ninguém.     

 

           Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

É evidente, há coisas que não se podem dizer

Para não detonar inconveniências,

Cidades em que é preciso não tropeçar,

Esconder quadros com formas proibidas

Não pelo que se vê, mas pelos olhos que os viram

Sobretudo, muitos pensamentos barbitúricos,

Países que importa não deixar adivinhar

Debaixo de janelas que, para todos os efeitos,

Esgotaram todos os dias e noites.

É evidente, decretar que a abundância da terra

Se reduza a cinzas contritas,

Ouvir-te dizer que não queres, não podes

Saber mais nada de mim

E, depois, essa calmaria sem tempestade,

A calmaria sem ser por nada,

Um restolhar de putrescência

Lá onde não resta alma alguma

Ou, então, o secreto relevo do choro,

A sua orografia na respiração,

O seu súbito rapto por falta de ar.

Tudo muito bonito, até esta tristeza jogral,

Vagamente absurda e que dizes sem objecto.

Veremos, veremos se resulta,

Veremos se alguém escapa

Ao cerco de quanto cala

Ou se alguma traição guiará

Palavras incendiárias por uma poterna do coração.

 

Nuno Rocha Morais


quinta-feira, 9 de setembro de 2021

As raízes tornaram-se tão aéreas

Como a folhagem

E tu és agora uma das Mães.

Erro de túnel em túnel,

As vísceras da terra,

E cada escuridão é apenas o umbral

De uma outra ainda mais profunda.

Procuro-te - se não te encontro

É porque não sentes a minha falta.


 

Nuno Rocha Morais


quinta-feira, 2 de setembro de 2021

 

Nunca foste tão feliz

Como aos dezassete anos

Da governação do teu corpo,

Tão feliz por não conheceres, dizes,

Amor nenhum

Excepto aquele com que te amavam.

Ninguém que a tua beleza não quisesse

Poderia existir no reino dos teus dezassete anos;

Os teus olhos bastavam para extinguir ou criar,

Nada do que fixavam se perdia

E era todo um mundo que os seguia,

Como se de um capricho deles dependesse

A luz, a neve, a aceleração de sóis,

O tecido leve das noites.

Aos dezassete anos, o riso dos amigos

É o melhor dos lugares conhecidos,

A única recompensa, a única família.

Nunca mais a alegria terá dezassete anos,

Tão humana e tão leve

Na sua declaração de sóis,

Nos primeiros relances sobre a alma,

Terra ainda fácil, tão fácil,

Todas as almas dançáveis,

Todas querendo dentro de ti

Ser o teu corpo porque nunca assim se viveu

A festa de ser um corpo.

 

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...