quinta-feira, 26 de janeiro de 2023



A terra perscruta o vento,

Procura entender-me,

Escolhe-me uma alma,

Quem sou? quem és?

Tantos lugares e nenhum,

Tantas formas e nenhuma,

Não me entendas, não me entendas,

Aí é a tua casa.


Nuno Rocha Morais                                                                                   

domingo, 22 de janeiro de 2023

Rosto de uma condenada (da Cadeia da Relação do Porto)


De que causas emergem estes olhos,

Desferindo o seu negro a direito,

Ninguém sabe. Nada se sabe do desfecho

Desta mulher de cenho franzido

E cabelo desgrenhado, de número ao peito,

Miúda, tisnada por muitos mais sóis

Que se queimam na agrura.

Este rosto recusa-se a não ter feito nada,

Despreza as expressões destiladas, insípidas,

Como o arrependimento ou a piedade.

Lança-se, irremediável, no poço do seu crime,

Juntando-se à contumácia das luas,

Que preferem perder-se nas águas

À existência insípida na ficção de um céu.

No fundo, a vida dessas damas,

Adereços em casas burguesas,

Entre almofadas, reposteiros, lavores,

Um pouco pálidas, um pouco consumptas,

Não mais do que o necessário ao seu encanto;

Damas canoras, à maneira italiana em voga,

Nas tristezas, histerias e prantos.

No entanto, esta mulher prefere a culpa

De não acreditar no juízo

E muito menos na injustiça,

Essa desordem consoladora.

Se pensa em alguma coisa,

Não pensa nisso.

Por um segmento de instante,

Talvez fosse possível passar os dedos

E sentir o relevo de uma aflição,

Latente e, porém, distante. 

Mas então, logo este rosto duro

Dissipa os dedos:

Imagens vindouras não podem julgar. 


Nuno Rocha Morais

domingo, 15 de janeiro de 2023

Vou acabar de depor o teu corpo
Num país de nuvens.

Vieste tão alta de tão alto

Que só aí poderás pousar a cabeça

Sem sobressalto,

No repouso que escolheres

E onde nada do vento te mude.

Aí serás irrefutavelmente livre.

Depois, vou levar o teu coração às águas

Para que as constelações o venham buscar.


Nuno Rocha Morais
 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

  

 

De novo, o duelo que não poderás ganhar,

A laceração, e de novo há pedaços

De um coração insípido

Que se esmagam com a chuva contra o vidro.

Mas a verdade é que não chove

E a verdade é que no céu

As estrelas retomaram a sua engrenagem.

Já consegues apreciar o funcionamento 

Da gramática alemã, ou qualquer outra.

Que te preste.

O sono deixa-se convidar,

Como um animal dócil,

E os sonhos dissolvem-se sem rasto, sem memória –

O mesmo é dizer, sem consequências.

Redescobres por fim a maravilha

De uma ostra sem pérola.

O mundo que era real e se converteu em miragem,

Dolorosa miragem é novamente real

Nos seus modos, nos seus ritmos,

E em breve virá esse vazio que é a aceitação,

O melhor que muito amor deixa,

Uma indiferença que, reconhecida,

É quase euforia.

A tua vida será quase tua outra vez.


Nuno Rocha Morais

domingo, 8 de janeiro de 2023

Três anos são uma casa de barro,

Sobre a qual se abatem iras

De chuva e canícula

Uma espécie de mal punindo

Uma fragilidade ridícula,

A do barro, e quando a casa

Quisemos de pedra,

Gritaste e caiu o relâmpago

E acordei ao relento

De um coraçãozinho trágico,

Sempre em queda,

Mesmo se em repouso,

Comportando-se como chama

                       Muito antes do fogo.


Nuno Rocha Morais
 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023


Madrugada segredo sebastianista:

A bruma desce sobre as coisas quase asma,

Erguendo na visão de todas um fantasma,

Na bruma, tudo é sombra e tudo dista.

 

Paira um frio metálico e o vento é embotado,

Os espaços tornaram-se breves e lassos

E as distâncias na bruma têm curtos braços.

Neste silêncio quem vive? Aliado ou inimigo?


O que há, doce calma ou ameaça?

Dentro do movimento, nada mexe ou passa,

Tudo está como quedo em ser incerto.

 

O que se vê no céu? São aves ou instantes?

Serão dessas vidas as mortes rasantes?

Na bruma, nunca estou de quem sou perto.


Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...