sábado, 31 de dezembro de 2016

Toda esta vida,
Todo este tempo em mim reunido
Para, afinal, servir de raiz a uma lápide;
Toda esta vida
Me soube a reencontro com as coisas.

Nasci no seio da mesma matéria,
Agrupada em várias formas,
Mas há uma igualdade
Entre mim e as coisas,
Comungámo-nos.

E, por isso, morrer
Será apenas voltar ao nada
De onde se ergue todo o início.


Nuno Rocha Morais 

domingo, 18 de dezembro de 2016

Uma Fala


A ninguém desejaria que estivesse
Agora dentro de mim,
Mas, como sabeis, senhores,
Não me assiste escolha,
Não há fuga,
Sou o meu próprio fogo, a minha água,
Inferno e dilúvio conciliados.

                  


Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016







Aguardo outra vida,
A nova estação, aquela
Em que te esvaíste
E na qual hás-de voltar.
E enquanto não voltas,
A minha mão deslaça as palavras de Outono,
Desencadeia o vento
E há uma nostalgia
Entre o silêncio que gera esta página
E uma tempestade que se estorce,
Se encabrita, se morde pelos céus.
Aguardo outra vida,
A claridade, o desabrochar
De uma nova estação,
A de abrires aquela porta.


                      Nuno Rocha Morais

domingo, 27 de novembro de 2016

Eu decidi que haveria um Natal maior
Que as árvores e os presépios e os presentes
E a bondade obrigatória, forçada, engolida.
Eu decidi que o Natal seria um gesto
E não um programa inerte, pendente.
Eu decidi moldar o coração
Num amor para todos
Porque o Gonzaga sabia:
“Eu tenho um coração maior que o mundo.”
Eu decidi ser fiel à estrela
Sufocada no céu convulsionado
Por tantas outras luzes
Eu decidi ser fiel e seguir a estrela
Esquecida
Atraiçoada.



          Nuno Rocha Morais 

domingo, 20 de novembro de 2016

Folha por folha, sem repetição,
Em cada anel somado ao tronco.
Temem tanto a primavera como o Outono –
Não temem na sua tolerância tenaz,
Na sua constância consciente e desconhecida.
Agora, são um animatógrafo 
De folhas, de pássaros, de ventos menores.
Mudam, mudaram, voltarão a mudar,
Sem nunca se perderem.
Será possível que os outros nos desconheçam tanto
Que nos comecemos a desconhecer nós próprios?
Inteiramente conscientes
Na morte e na vida
                                  Nuno Rocha Morais

domingo, 13 de novembro de 2016


Deveria dizer-te que os meus braços
São também eles os remos partidos,
O coração desmembrado pela confusão.

             
Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Paula

Manhã, manhãzinha vem pela estrada, vermelha, sorridente, cantarolando. Chega com a manhã.
Na aldeia, ninguém sabe de onde veio a Paula, não se lhe conhece família, marido, pais, filhos, ninguém. Existe por si. Desde sempre: ninguém a criou. Ou é criada todos os dias, nasce com a manhã.
Da Paula só se sabe que é louca. Assim dizem os sãos. E ela quer ser louca. Procura a loucura no vinho. A loucura, dizem, nasce do encontro entre o vinho e o sangue da Paula. Passa algumas horas por dia na taberna. Os homens acham-lhe graça. Pagam-lhe copos, dão-lhe garrafões. Sabem que embriagada a Paula tira a roupa. Riem-se e, depois, pia, catolicamente, dizem “Pobre alma”. E a Paula ri-se com eles, como se longe de si mesma.
Mora no meio do monte, num lugar a que chamam “O Buraco”, uma velha casa meio arruinada, abandonada até pela memória, pelas sombras do passado.
A Paula repovoou um pequeno quarto: um retrato do Papa, um colchão, os garrafões, os gatos que ela ama, a sua loucura. A Paula chama-lhe agora o Solar do Inca. Fala dos diamantes que só ela conhece. Fala da gente que a visita. “Hoje, tenho visitas”.aperalta-se nos seus trapos, depois de se ter lavado na fonte, nua, com as beatas puríssimas a rosnarem entre dentes – “Porca”. A Paula não liga. Faz a sua vida a que ninguém chama vida. Só miséria. Mas ela, louca, parece feliz. Longe de todos. Só perto dos seus sonhos, da sua imaginação, da sua loucura, dos seus gatos. A Paula é feliz.
Mal a manhã acende o tempo, a Paula desce a estrada. Cantarola com o chilrear infernal da passarada, o cantar dos galos, um boi que muge. A Paula começa a ser o tempo. Quando a vêem na estrada, sabem que é a hora x. Certa, a Paula faz o seu caminho para lado algum, azafamada a procurar Áfricas, ouros e ir a festas.

Mas uma manhã, a Paula não desceu a estrada. E três dias passaram. Às gentes da aldeia, a manhã parecia incompleta, faltava-lhes alguma coisa. Alguns homens e mulheres foram ao Buraco. A Paula estava lá, no colchão, entre os seus gatos. Lábios adormecidos em pedra. Lá longe, alguém cantarolava.

     Nuno Rocha Morais

domingo, 30 de outubro de 2016




Se, ao entrarmos numa casa,
Temos a impressão de voltar ao passado
E cometemos o abusivo atalho
De pensar no passado como uma casa
Que poderá eventualmente ser nossa,
Então, estaremos condenados a viver
Em meras cicatrizes de casas,
Linhas enegrecidas onde só a custo
Se adivinham paredes e tecto nenhum,
Só talvez uma porta fora dos gonzos,
O fóssil de uma entrada sem saída
Que bate sob o assalto violento
De uma decepção curiosa,

A única presença que talvez não seja intrusão.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 17 de outubro de 2016


















Que a tua memória seja longa,
Embora, por vezes, a fites incrédulo,
E não te reconheças em nenhum
Dos outros que foste e em ti apagaste.
Memória longa para saberes
Onde se encontram perdidas as coisas,
As pessoas, os lugares,
E então talvez as causas aceitem revelar-se,
Personagens na sombra que abandonam o disfarce
Porque nada mais pode a memória
Senão murmurar-te que viver
É desencontrar.
Que seja longa e labiríntica:
O fogo sem chamas reminiscente
O que te espera é isso,

Uma longa conversa com a memória.

        Nuno Rocha Morais

domingo, 9 de outubro de 2016


Às vezes, marco encontro com ele –
Para jantar, para ir ao cinema,
Mas, depois, é o silêncio estéril
De quem não tem nada para dizer.
Prefiro não me fazer confidências,
Não me fazer perguntas
Porque não sei as respostas –
Ou então conheço-as bem de mais.
Evito dizer “eu” porque há sempre alguém
Em mim que se insurge, excluído.
E é longa a inimizade que nos une.
Chego a casa e lá estará,
À minha espera, com uma recriminação:
Censura-me porque está só,
Censura-me porque ama.


                                           Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Gens litterarum

São amigos dos poetas,
Os poetas são o seu ganha-pão.
Amassam, cortam, dissecam versos,
São abelhas obreiras azafamadas.
Calceteiros e sinaleiros:
Encontram nos versos o sentido único,
As proibições de voltar à esquerda ou à direita.
Podam a volatilidade do verso,
Impedem que a palavra se perca
Em busca da palavra mais justa.
Cimentam o verso,
Plantam neles lindos canteiros
E sentam-se, bucólicos, embevecidos,
À espera do musgo.

 Nuno Rocha Morais

domingo, 25 de setembro de 2016

Ao ler um nome no programa de um seminário sobre poesia contemporânea, sobrevém-me a consciência, com um peso de quase facto, de que a existência da minha obra, se a tiver, será póstuma. A culpa, se de culpa se pode falar, é total e fatalmente minha porque nunca me fiz à via-sacra da publicação. (...)

Posso também perguntar o que é isso da minha obra – o amontoado de rascunhos de poemas, a massa de escritos autobiográficos, as reflexões pela rama de autores e livros?  Só por especial favor ou com especial condescendência se pode falar de uma obra. Mas, por uma questão de simplicidade metodológica, aceite-se que de uma obra se trata: mesmo que nunca venha a ter existência póstuma, entendendo-se aqui existência por letra de forma e chancela de editor, possui o seu próprio espaço, cria-o. Ninguém a lê, ninguém sabe que ela existe, mas isso não impede nem anula a sua existência, na medida em que é, não o reflexo da consciência de algumas coisas, mas uma existência que cria e, ao mesmo tempo, é essa própria consciência. Não se lhe pode, por isto, dar especial importância, só porque é uma consciência exponencial, quase se diria exacerbada, da linguagem e do mundo derivada da consciência de um homem, mas o que não se lhe pode negar é existência. Existe talvez num grau menor, a um nível de exposição quase nulo, com um raio de comunicação igualmente quase nulo, e irá extinguir-se com todas as outras que gozam da máxima exposição e são capazes de uma comunicação de longo alcance. Não é uma tentativa de auto-consolação – dificilmente a ideia de extinção total de tudo, com o nosso sol a abater-se sobre si próprio, me serve de consolação. Mas, para levar a  minha lógica até às últimas consequências, talvez as consciências e os espaços delas que são todas as obras fiquem a pairar no éter, entrem em órbita ou, furtando-se às leis do Universo, voguem até aos confins dele...

Nuno Rocha Morais

(Por isso, filho, dou-te a palavra em todo o espaço que puder)

domingo, 18 de setembro de 2016

 Quando parti, a minha mãe não me deu,
Como a mãe de d’Artagnan, esse unguento milagroso,
O bálsamo talvez levemente fétido,
Certamente inútil,
Produto de uma sabedoria
Que ganhou o ranço da ingenuidade.
Como d’Artagnan logo percebeu
Havia dores, feridas, que o bálsamo
Não podia compreender, muito menos mitigar.
O bálsamo que a minha mãe me deu
Vinha dentro de mim,
Esse que, em voz aflautada pela ironia,
Se designa por amor de mãe,
E a sua pureza muito podia
Contra os inúmeros Rocheforts do mundo.

Nuno Rocha Morais

domingo, 4 de setembro de 2016


A tabacaria onde, anos a fio,
Comprei jornais fechou,
Por extrema unção, os vidros
Foram revestidos com folhas
De jornais antigos, mumificando
A velha tabacaria.
E fechou também a pastelaria
Que deixei de frequentar
E obscuramente entendo
Que, doravante e por uns tempos,
Todo o açúcar me pareça sórdido
E guarde um gosto de remorso.
Os hábitos não custam a deslaçar,
Parece quase indolor que sejam
Substituídos por outros
Ou que se ambientem noutros espaços.
Hoje comprei jornais noutro lado
E, transversalmente, ocorre-me
Que todas as religiões estavam certas
E, que a luminescência de um sorriso
É comungada por todos os deuses
Em todas as aras e nos núcleos
De todas as crenças.
A imortalidade cumpriu-se
Em plástico, mercúrio, pesticidas.

  Nuno Rocha Morais

domingo, 21 de agosto de 2016


Certas palavras entraram na nossa vida,
Ou começaram a inchar, a supurar,
Panarícios, seivas, cactos, pele.
A mãe a encontrar netos nos gatos.
Alguém deixou uma bênção em aberto
Para tudo o que farias depois.

   Nuno Rocha Morais

domingo, 31 de julho de 2016

Depois dos cinco continentes –
E porquê só cinco, meu Deus? –
Tenho a impressão de nunca,
Nunca ter saído do sítio.
A vida, não tanto o mundo,
É de um redondo melífluo
E o eterno retorno não passa
De uma forma de estupidez,
De uma tacanhez da imaginação,
De inépcia, só porque não soube
Provocar os lugares, a variação dos espaços.
(Esteve sempre aqui –
E sente o remorso do exílio.)

Nuno Rocha Morais

sábado, 16 de julho de 2016

PREVENÇÃO RODOVIÁRIA




A toda a velocidade,
Passamos por fardos de carne,
Montículos sangrentos;
No momento do estouro,
Talvez não tenha havido sequer tempo
Para um miado, para um ganido.
Depois, a escuridão,
A carne abandonando-se a si própria,
Embora recuse desintegrar-se,
É uma forma já inútil,
De um sarcasmo macabro,
Que se derrama ignorando limites
Que apodrecem, liquefeitos.
Nada é estanque, em toda a parte
Há uma afinidade de destinos.

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 5 de julho de 2016

(GLOSA AO POEMA “AS MÃOS DADAS” DE JORGE DE SENA)


O outono solto.

Dêmos as mãos:
O amor — com mãos solícitas —
Faz destas dadas mãos
Idades infinitas.



               Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Não ter eu um país
Nunca soube ter um país
Um pais uma nacionalidade
Que me dissesse sob que perspectiva
O sol se põe qual a importância das direcções
Oeste país das velas
Sul reinos de águas morenas
Leste ou norte império do esquecimento
Um pais de nome pequeno
Que nunca seria gravado no tímpano de um mapa
Um nome como um seixo
Sim um país pequeno engolido entre as suas fronteiras
País quero dizer corpo ternura
País de montanhas prados vales rios
Um país que me ame
Um país que eu saiba amar
Que me peça esforço mas me conceda regresso
Que não desapareça na erosão do oceano
Que não seja terra volúvel
Um país rubro plano negro
Onde a morte me suba tranquila
E me dê tempo de a pensar
Não ter eu um país subjugado por mim
Estou de pé estar de pé é pedir independência
Sou túmulo do meu país
O meu país é ser meu túmulo

Nuno Rocha Morais

domingo, 15 de maio de 2016

Que da obra fique,
Não aquilo que desagua num suspiro,
Num fim;
Não o nada que se segue
Ao que está apaziguado na completude;
Que da obra fique antes
O contínuo gesto das estações,
Da busca da obra que cresce,
Germina, leveda;
Que da obra fique
O contínuo gesto de ser feita,
Mas animada pelo sábio ritmo da destruição;
A imperfeição conquista o tempo:
Que continuamente a obra se faça
No fazer-se do tempo.

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 26 de abril de 2016

Poema terrível


Viu tudo em Hiroshima.
Viu tudo em Chernobyl.
Estes nomes edificados sobre a morte:
A súbita síntese da luz,
O sopro irresistível,
A redução de tudo à sombra
A redução de tudo à terra.
Viu tudo nas ilhas do Pacífico,
No pacifico horizonte
Onde a morte se ensaiava
Na erecção vegetal e letal.
Viu tudo e tudo lhe cavou o olhar,
Descobriu que nascer talvez já não seja
O momento em que o homem reconhece a sua vida.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 25 de abril de 2016


É possível que o homem caiba
Entre o céu e a terra sem se rasgar.
É possível que o homem caiba
Entre outros homens.
É possível que o homem adormeça
Com lobos de fogo à cabeceira.
É possível que toda a verdade da boca
Caiba no beijo sobre a pele.
É possível que o homem viva
Dentro de si próprio,
Sem outra cor que não seja a cor de ser homem,
Em que a fonte do homem
É apenas o homem:
À superfície do homem
A pura transparência animal.

Nuno Rocha Morais

domingo, 17 de abril de 2016

COMUNICAÇÃO



A mãe que crucifica o filho
Com dois bofetões
E a publicidade
E as discussões familiares
E um par de namorados felizes
E uma vizinha submersa em luto
E um homem que quase chora
E tanta gente na mesma paragem de autocarro
Para caminhos e intenções tão diversas
E alguém que esquece que alguém morre –
Vida e motivos obscuros.

Nuno Rocha Morais

domingo, 10 de abril de 2016

MODELOS



Ri, sorri, prova, usa,
Corre, salta, dança,
Tira, põe, despe,
Sobretudo despe,
Expondo castamente
A nudez comercial.
Aprenderam a graça das nuvens,
Não têm direito
À treva da tristeza,
Aos problemas íntimos e caseiros:
São perseguidas por salas em festa,
Por fotografias, amores infelizes,
São perseguidas pela luz
Que, inexorável, as corrompe
E envelhece, como afinal, a todos.
A luz que as recebeu,
A luz que elas apuraram
É a mesma luz que as vence,
Água sobre papel.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...