sábado, 21 de março de 2015






Pronto, deixem-me, amanhã, vou sair de casa,
Tenho vinte e cinco anos e fiz ontem
Anos de morto, amanhã vou ter fome,
Amanhã, não vou ter nada senão versos
E neles estarei irremediavelmente só
Com os objectos que ninguém cantou,
Com os baldes, os cinzeiros,
Amanhã, vou lembrar-me do pai, da mãe, do irmão,
Dos avós, dos tios, das primas e primos,
Amanhã, terá sido tão fácil tê-los perdido,
Terá sido tão fácil ter arcado com o ódio granítico dos amigos,
Amanhã, já ninguém me ama, a barba esconde-me o nome,
Amanhã, a minha alma desabou e isto não quer dizer nada,
Para quê falar desse amanhã de madeira podre?
Amanhã, vou aprender a lamber feridas,
A perder o pudor quanto ao sangue,
Amanhã, a vida vai matar demasiado lentamente,
Mas isso não importa rigorosamente nada,
As vidas vão continuar, apressadas e prosaicas,
Sob um céu indiferente, sob esparsas e poéticas aves.


Nuno Rocha Morais

                                   


domingo, 1 de março de 2015

O crepúsculo ajoelha sobre o mar,
Num brocado de luz e água e sal.
Há só uma gota de dia para cada gota de mar
E sob o marulho há um silêncio oculto, subtil
Que concede esse som do mar
Que vai e volta, que volta e vai,
Um som aveludado que em nada
Perturba o reino do silêncio
(será que alguém espera palmas)
Que cresce e cresce e cresce.
Porque agora é noite,
A noite que como Penélope
Irá desfiar os caminhos,
Apagar os rastos que neles sobrevivem.
E um esquecimento esbaterá
As formas que contornam a matéria.
Um fim ofegante está mais e mais próximo
E depois o fim pacificar-se-á no silêncio.
O silêncio de um fim é o princípio.


                     Nuno Rocha Morais





Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...