sexta-feira, 27 de julho de 2018

Entretanto as agendas vão-se juncando
De números de telefone que já não existem,
Náufragos sem nome e sem substância,
Dessorados por anos de mar,
Trazidos por uma maré inútil.
De nada serve esta trama frágil,
Que nos une a outras vidas.
A voz é mais funâmbula do que nunca
Nessas noites em que se repara num nome,
Que adquire um halo, intensidade,
Movimento súbito, velocidade
Em águas algures paradas,
Um acesso súbito de vida,
Logo estancado por um número sem saída.

Nuno Rocha Morais

sábado, 21 de julho de 2018

Aqui, no Cabo do Mundo,
A sós com o mar,
Espalho as minhas cinzas.
Estou em paz,
Converto-me em gruta marinha.

Nuno Rocha Morais












(O Nuno está em casa. Estamos em paz)

domingo, 15 de julho de 2018


Não tenho a pretensão de deixar
Lugares vazios na vida dos outros,
Breve sulco de espuma.
Vou e venho sobre a indiferença
Perfeitamente imóvel da folhagem.


Nuno Rocha Morais 

domingo, 8 de julho de 2018

A hóstia do incógnito –
Como saber se a tua alma é cobarde,
Como temperá-la contra o muito que teme?
Que homem és na extrema do homem?
Possas tu ser-te leve no caminho,
Viaja ligeiro – lembra-te,
Encontra o que puderes de acalanto
Em ti, à tua volta, no sereno,
Não leves na boca, na alma,
Mais do que um salmo,
Não saibas mais do que ser pequeno.


Nuno Rocha Morais 

terça-feira, 3 de julho de 2018

(A propósito de Nietzsche, relembro o poema do Nuno publicado em GALERIA,pág.37


Confirmação de Nietzsche

Na curva do outrora, 
Partimos, e nas velas, 
Assinado a sangue,
O nome de Deus.


Pelas Cinco Chagas,
Deixámo-nos retalhar,
Exauridos até que a carne
Já não pudesse suspirar qualquer vida.


Pelo Império fora,
Erguemos templos,
Criámos penumbra suficiente
E medo para que pudesse haver Deus.


Inquirimos, queimámos,
Trespassámos, trucidámos, 
A cada passo no sangue 
Fizemos saber a Fé.

Mas a frescura do sangue
Reduziu-se a cinzas.
Morremos, deixamo-nos cair
E a Fé subiu, subiu mais do que nunca.


Molhamos as mãos na prece, 
Na prece afogamos a alma,
Mas nunca mais Deus desceu 
Porque “Deus Morreu”

Connosco.

Nuno Rocha Morais


domingo, 1 de julho de 2018

Um quadro de Bonnard


Embora tenham sido reais,
Estas duas figuras que fumam
Na exígua intimidade de uma varanda
Converteram-se em ficção,
A que o olhar, porém, devolve
O necessário elemento de realidade
Para que a arte, como um sortilégio,
Possa existir e de novo do quadro
Emane o fumo e o odor do tabaco
E uma conversa quase sussurrada.
E as duas figuras fitam-nos também,
Reagem à nossa presença,
E é o seu olhar fictício
Que nos dá realidade também.

               Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...