terça-feira, 26 de julho de 2022

 


Não te censuro que me não reconheças,

O meu tronco foi margem das estações,

Aí a água e o jogo do tempo

Cumpriram o seu dever.

Também a minha voz se perdeu

Na erosão do silêncio

E já não te posso falar da forma antiquíssima

Como o fazia quando ainda não havia tempo

A galopar, a pender, a cogitar, a esquecer.

As curvas da face são outras,

As antigas foram-se perdendo

Para que o meu coração do tempo me aceitasse.

 

Quem sou? Não importa.

O meu nome é um eco de esquecimento.


Nuno Rocha Morais

terça-feira, 19 de julho de 2022

Preciso que me esqueças

Que me esqueças até ao fim

Que me esqueças nas palavras mais fundas

Nos gestos mais leves

Nos acasos e nos retratos

Preciso que me deixes deixar a tua vida

O palco de súbito tornou-se realidade

De luz angular acre

Amar-te já não é um fogo

Tem o lastro real

Tem o seu quilate em insónias

Em leitos demasiado vastos

Preciso que me esqueças

A tua lembrança de mim

Crucifica-me em não mais poder 

Ser que lembrança

Que pesa mais que esquecimento


Nuno Rocha Morais
 

terça-feira, 12 de julho de 2022


Perdoai-me as catástrofes que não vivi.

A História não me trucidou,

Não a ouvi estrondear, zunir, pigarrear,

Não me impôs fatídica mão no ombro,

Não exigiu de mim heroísmos.

Não a predisse, não a moldei,

Não tenho nada que a esbarronde

Nem nada que a alimente

Senão um encadeamento de pequenas histórias –

Desesperos que pareceram grandes,

Mas que afinal o tempo conseguiu tragar,

Desesperos que pareciam abrir abismos

E depois se soldaram num chão inconsútil,

Que transpus sem ser precisa sequer a sombra de um salto,

Alguns males pacatos, embora incuráveis.

Vivi em escalas quase miniaturais, tons menores

Seguindo inadvertidamente a máxima

Que avisa contra os excessos.

Salvei-me da imbecilidade algumas vezes,

Mas fui imbecil muitas outras, tantas mais. 

Não porto estigmas, nem auras.

Fui humano e não um fantasma.

Os médicos, os contabilistas, os amanuenses

Que me drenam e dragam podiam bem

Ter sido verdugos numa qualquer máquina de morte –

Calhou apenas que não fossem.

Encaixarei, melhor ou pior,

Em qualquer generalização.

Serve-me a correntia placidez

De um anonimato lapidar,

Uma preparação para o pó.

Televivi claro, grandes massacres,

Maremotos, a fissão atómica de paixões

Que sem dúvida mudaram a face do mundo

E o mais terrível foi, apesar de tanta emoção,

Ter a sorte de ser espectador

Sem sentir a sua realidade

Mais do que uma imagem,

Como tantas outras, indiferentemente

Reais, simuladas, manipuladas.


Nuno Rocha Morais 

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Visita-me quando quiseres, Poesia,

Terei sempre um sonho para tu encheres.

Ondas de horas 

Aportando na minha praia,

Coração evadido,

Fragmentos de ondas estacionais

Erguendo-me subitamente de cima

Do peso da luz deste cais.

São pequenas folhas de dias

Descendo sobre as pálpebras

Abafando um momento

Os passos amargos da morte.


               Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 1 de julho de 2022


A forma oficia o barro,

É muitos indivíduos informes,

Uma revoada de equívocos

Que não admitem réplica,

Manancial: sou.

Aqui estão coisas que não chegarão a ser,

Tantos e tantos futuros. Seja.

Há talvez um nome que me procura,

Élitro e música que desce

De onde não pode ser ouvida

Para o último seu destino primeiro,

Onde não será ouvida,

Porque o seu verdadeiro destino é este,

A duração, deixando a memória

De uma vibração inscrita no espaço,

No som do tempo e do espaço,

Como a anilha na pata de uma estrela.

O ser estrangeiro é enorme

Dentro de mim, devora-me,

Perde-me: talvez dure,

Não sei, vibre, nome de música própria.


Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...