quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

31 de Dezembro

 A areia chega-me agora à cintura,

Não me tolhe, nem condena,

Mas está lá, sinto-a.

Há vozes com sede que se abeiram,

Querem beber, mas só tenho sede igual

Para lhes oferecer, ou areia.

A areia é quente, leve, maternal –

Não aquela que os humores vários do vento

Aqui vão depositando, mas o favo

Das que me cobrem há muito.

Às vezes, parece que nas areias

Se anima um instinto de construção,

Mas de que, grão por grão, logo desistem

E aquietam-se

Na arquitectura de apenas

Estarem junto às outras

E aquecem, ao desalento de irmandade

São mais fortes as vozes

Que querem beber, as areias

Que pedem água, jurando

Que a feitiçaria de uma só gota faria em terra,

São mais fortes as vozes, como as areias,

E lamentam-se da construção que não foram,

Coisas por fazer protestando,

Julgando-se incluídas no útero de algum futuro.

 

Nuno Rocha Morais

 

sábado, 26 de dezembro de 2020

Apodrecemos no medo,

Somos varados nas searas de sombra

Pelas sementes de outros olhos,

Olhos que vêem além do que é.

Apodrecemos no medo

E das nossas cinzas, renascemos,

Muro imune.

 

Nuno Rocha Morais


sábado, 19 de dezembro de 2020

 

Inundando a matéria

Com a energia da altura,

A raiz.

O tronco, os ramos mais elevados,

Mais embriagados de seiva,

As folhas ondeantes de verde

São a carne e o meio

Do sonho em que a raiz arde:

O de, algum dia, ser céu.

 

Nuno Rocha Morais

sábado, 12 de dezembro de 2020

Monólogo


 

Dos meus poemas que te direi?

Só que busquei neles a transparência

Que o mundo permite,

Que revolvi a terra das palavras,

Fiz enxertos na sua arquitectura,

Fundi, descarnei.

E de mim, que te direi?

Apenas que sou alguém

Envolto nesses poemas. Nada mais.

E a ti, que te pedirei?

Que dês vida aos meus poemas,

Pedindo-lhes mais do que eles te podem dar.

 

 

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

 

Aqui conheço o rumor da chuva,

Como se propaga pelas entranhas da casa.

Sei quando as ruas estão molhadas,

Conheço o passo leve das manhãs de Junho,

Com essa quase calidez pelos ombros

O passo dos vizinhos nas escadas

Tenho uma ideia aproximada

Das horas a que saem, a que chegam,

De quem são e o que fazem.

À noite, na sala às escuras, tenho se quiser,

A companhia de vermelhos, azuis, amarelos dos anúncios luminosos,

Mas também conheço a escuridão,

Encontro a casa sem a tentear.

O mundo vai mudar de janelas,

Janelas estranhas para o mesmo mundo,

Trazendo um mundo estranho

De sons, não será o mesmo.

É preciso esquecer que, muitas vezes,

Aqueles néons foram o único resquício,

A única réstia de qualquer esperança.

 

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...