domingo, 31 de março de 2019

Excerto de "Cosmogonia do vento" ( in Galeria)

...
Como vento, percorrias a velhice
Das montanhas e a sua ciência,
A juventude solitária dos vales,
À tundra davas novas da floresta,
Polinizavas as cores e os lábios.
Pelas auroras, discernias as alegrias,
As mágoas, as mortes
Orquestradas com o amanhecer
Como o vento, eras ogiva e eras corola,
A aromática harmonia dos frutos,
Como vento, eras (a) voz opaca,
(A) hialina transparência,
Como vento, sabias que a rosa-dos-ventos
Velava ainda continentes
Que as vagas ignoravam,
Mas tu, vento, não.
Como vento, sempre vento, provaras o leite,
Irmão das mães.
Vento, instinto, instinto, vento
Animal de vento, enguia,
Alga, sargaço, fonte,
Coetâneo das mitologias,
Dos labirintos, das asas de cera,
De sonhos, guerras, incêndios,
Como vento, eras consubstancial ao tempo
Como vento eras, como o tempo,
Intemporal.
...

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 26 de março de 2019

SOLILÓQUIO DE VITORINO NEMÉSIO (in Galeria - pág.64)


Sabes que envelheceste,
Porque o sangue nas tuas veias
Vai irrigando também a morte.
É curioso como um homem que envelhece
Se assemelha à giesta, à urze.
Os seus sonhos são o tropel
De cavalos há muito mortos,
Que ficaram a dormir nas sombras
Que a infância ainda projecta;
O latir de cães companheiros de infância
E que nela ficaram, dormindo ao sol.
Um homem que envelhece
Reúne-se, em certas tardes,
Com parentes desaparecidos,
Retoma hábitos intocados,
Volta atrás em amores ressequidos
E inflecte para palavras
Que terá calado ou perdido.
Um homem que envelhece
Permite-se revisitar todas as vidas
Que poderia ter tido,
Como se divisões vazias de uma casa,
Ou melhor, como se ilhas desertas
De um arquipélago de vidas.
Um homem que envelhece
Pensa “Oxalá o meu Deus seja verdadeiro”
E tu sabes que envelheceste,
Sabes porque nunca o sangue
Te pareceu tão transitório,
Artérias que o levam,
Veias que o não trazem
Contaminado com os venenos de existir.
Sabes que envelheceste
Porque o teu corpo já não se recusa
A ser efémero: resigna-se.

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 19 de março de 2019
















Suspeita sempre destes versos.
Não te enleies neles,
Nada lhes peças
Porque pérfidos
Talvez te dêem tudo.
Não deixes que eles te sonhem,
Não os deixes rir ou chorar por ti.
Suspeita deles até ao fim
Porque, quem sabe?
Talvez eles pretendam ler-te a ti.

Nuno Rocha Morais

sábado, 9 de março de 2019

DIRIA O RICARDO REIS - (in Galeria - pág. 47)

Em nós tudo acabará
Num nó onde quebraremos.
No silêncio,
Onde afogaremos tudo o que está para trás
E seremos afogados na distância.

Saibamos acabar,
Cumpramos as estações que despertam
Na possibilidade dos dedos.
E quando acabarmos,
Abramos as mãos
E que nenhum por fazer delas role.

Saibamos não legar perante a morte
À nossa curta vida
As feições da culpa
De ainda mais a termos encurtado.

Nuno Rocha Morais

sábado, 2 de março de 2019

AS INFLUÊNCIAS NA POESIA


A sombra de uma linha sobre nós
Que se acoita na nossa língua,
Como uma doença,
E a rouba.
A luz lisa do papel, a sua candura
Já obscurecida
Por uma voz já rouca,
Um olhar já rasgadamente aberto,
Um lábio já tangido,
Uma colina de barcos já envelhecidos,
Um degrau de crinas já consumido,
Uma veia já navegada pelo sorvo.

A maré que engole
O lugar da nossa liberdade.
Somos a folha invadida
Pelo incêndio minúsculo de um eco.
É sempre a mão da luz alheia
Que nos guia por entre o vapor das palavras
E nos faz juntar águas
Onde esta manhã de um anel já foi ouvida.

Invadidos por páginas,
Lutamos para não ser apenas a ramificação de uma boca.


Nuno Rocha Morais
(in GALERIA pág.9) 

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...