quinta-feira, 29 de abril de 2021

Dança


Arabesco de aguarela

Curva ondulação

Música transfigurando-se

Em gesto ou cisne

Música esvoaçante

Polinizando o corpo

O corpo responde

Brota alígero no espaço

A música torna-se o corpo

O corpo espaço

O espaço música

 

Nuno Rocha Morais

sábado, 24 de abril de 2021


 

Eu sou o que sou,

Como a pedra não tem avesso

O meu sangue não muda de direcção.

Não tenho força para uma última metamorfose.

 

 

Nuno Rocha Morais

domingo, 18 de abril de 2021

Fotografia do túmulo de Camões


 A luz anónima de uma tarde qualquer

Entra pelo vitral, afasta suavemente a penumbra

E ilumina o túmulo do poeta,

Num simbolismo demasiado evidente à primeira vista.

Mas a fotografia foi tirada por um dinamarquês

Turista que provavelmente

Não sabe sequer quem é Camões –

Ou se sabe, não autopsiou o segredo

Das correrias, dos amores venais e platónicos,

Das desilusões, da tença, da miséria, -

Serenidade, a justa recompensa

Para um corpo que não está sequer aqui,

No claustro das glórias.

Surpreendeu apenas, naquele canto despojado,

Uma eternidade alumbrada pelo próprio tempo

Que desceu com um instante da eternidade

No ínclito de uma tarde.

 

Nuno Rocha Morais

sábado, 10 de abril de 2021


Também o inferno evoluiu,

Já não se mantém à distância

Por força de fé, devoção, exorcismo.

As religiões estão perplexas em uníssono,

Assombradas, porque o inferno se deslocou,

Se trasladou: já não está em baixo,

Ou apenas em baixo, mas também por cima,

Dos lados, talvez até já dentro. Aqui?

Alguns profetas dos factos consumados

Dizem que o inferno está

No coração dos homens.

Quem o diz lá sabe.

Para os oficiantes, mudou tudo,

A escuridão sobe nos templos e espalha-se,

Já mal se vislumbram os templos,

A menos que sejam apenas a pedra.

O inferno evoluiu, já é também uma substância,

Um gás, um ser vivo e mortífero,

Um degelo súbito que enraivece as águas.

Há quem ouça, dia e noite,

Os golpes do inferno, desferidos

Sem fúria, mas com a certeza,

Cada vez maior de vitória.

Qual vitória? Derrota de quem?

Há quem ouça e jamais tenha deixado de ouvir,

Os gritos dos condenados.

A maioria, como sempre não diz nada,

Limita-se a ouvir os golpes.

Talvez o inferno não esteja ainda

 Dentro de portas, mas está, sem dúvida

Mais perto.

 

Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 7 de abril de 2021

 

Oh fogo-de-artifício

Lindas mentiras

De todas as cores

Ooh´s e Aah´s para todas as bocas

Sonhos do tamanho de um segundo

Espumas de cor e luz

Lindo fogo

Solilóquios no céu turvo e escuro

Lindo fogo

Pena é depois que o céu

Escuro esqueça

O fogo acabou escuro

Escuro estou só

Uma cana de foguete aos pés

Que lindo fogo que foi

Que lindas mentiras

Ando pelo vazio e a noite segue-me

 

 Nuno Rocha Morais


Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...