terça-feira, 30 de março de 2021

Se é a morte sob a minha pele,

Não me resta consolação outra

Senão pensar que estou a morrer

Satisfeito por ter vivido,

Por ter sido humano,

Por ter amado.

Se estou entregue a sinais

E um sentido inalterável me conduz

À consumação da sua vontade,

Resta-me pensar que nada me destece

E se a morte se consolida

E o céu endurece na ameaça da cerração

E se eu declino, mesmo que o sol

Não incline a sua cerviz

À vontade de um sentido,

Se a luz prossegue porque a treva

Nada depende de mim,

Fico satisfeito e não atendo

À escala de graves

Que fez latejar os seus punhos

Na minha garganta e têmporas.

Não servirei nenhum lamento,

Nenhuma escuridão me espera, servil.

Não ouço édito de expulsão.

 

Nuno Rocha Morais




quinta-feira, 25 de março de 2021

Fresco egípcio

 

Tilintam argolas, cintos.

Muito antes dos respectivos nomes,

O teu corpo inventou todas as danças

Movimento perpétuo, inconsútil

Tilintam argolas, cintos,

Ao ritmo da tua nudez;

Em breve, o Nilo te há-de responder

Águas e limos. Dança,

A tua alma é gato e crocodilo,

À tua respiração acorrem os mortos,

Agora, a morte pesa uma pluma.

Enquanto danças, também tu

És a esfinge e nada realmente finda.

[A tua respiração decidirá o tempo,

Os teus braços, o espaço de céu,

A terra seguirá os teus saltos,

O mundo, as tuas voltas e rodopios.]

 

Nuno Rocha Morais

sábado, 20 de março de 2021

 


Quando vais a subir a larga avenida

Já a noite a vem descendo,

Longa, tépida, lenta.

A amada espera-te,

Virá de castanho, talvez de verde,

Poderá trazer um lenço negro ao pescoço.

E depois, entre o arvoredo do jardim,

Só os dedos vêem, só o hálito

E os lábios reconhecem.

As mãos da minha amada na face –

Preia-mar, olvido.

 

Nuno Rocha Morais

sábado, 13 de março de 2021

 

Há horas que é preciso roer, esburgar,

Por mais que os esqueletos do tempo,

Cedo ou tarde, se volvam fantasmas

Que talvez não tenham nunca deixado de ser.

São horas, estas em que espero,

Com o meu irmão, estóico sem filosofia,

A eflorescência de um sorriso,

O sorriso da minha mãe numa cama de hospital

Para a ressurreição da anestesia.

A minha mãe é a alegria desta brancura estéril,

Deste berço de agonias, destas paredes que gemem,

Insones, contra os pesadelos do corpo,

A minha mãe é a minha alegria,

Como o será no paraíso de todos os deuses.

E agora está a minha mãe sossegada

Como o mar saciado de marés.

Como o mar, a minha mãe.

Além dele, estão realmente os fictícios reinos

De monstros e terras em fogo,

Que terão formas outras,

Mas não serão menos de monstros e terras em fogo.

A minha mãe em sossego agora,

Como um mar que espero não acabe.

Embarcaste na vigília,

Vês como tece e destece noites,

Ondulação vazia de sonhos –

Só o gume de um sobressalto,

O episódio de um gemido.

 

                                   Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 8 de março de 2021

Manhã

 

Talvez hoje seja um dia, o dia,

Talvez hoje haja coisas possíveis,

O caminho que se deslaça

E prossegue para além da curva.

Talvez hoje a mulher me espere

No promontório da loucura,

A seara enfim liberta da terra

Para me entregar toda a distância,

O outro lado do horizonte;

Talvez hoje a mulher me espere,

Doce como um palmar, e fresca.

Talvez hoje já seja dia.

 

Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 4 de março de 2021

 Depois de meses soterrados por cinzas,

O sol encontrou uma galeria

Até nós e puxa-nos para fora.

A desavença parece ter solto o ar,

Setentrionais as feridas começam a fechar.

Na rua, pela primeira vez em muito tempo,

Vejo uma mulher de boina –

Bege, primeva.

A mulher tem olhos azuis.

O dia também.

 

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...