quarta-feira, 26 de maio de 2021

 

Passamos pelas ruas sorumbáticas 

Dos meus anos de estudante,

Residências e cafés cuja solidão 

Procuramos não perturbar com a nossa,

Embora caminhemos juntos,

Embora saibas que te amo,

Embora não te possa estender a mão.

Tanta coisa aconteceu aqui

Taciturnamente, episódios

Mal iluminados por lampiões públicos,

Mas, mesmo nessa penumbra,

Os seus contornos, conheço-os de cor,

Reconstituo-os de memória,

Ainda assim, aqui, entre nós,

Eu não seja capaz sequer de dizer

O que é que não nos aconteceu.

[E do que nos aconteceu,

Não se encontrara caixa negra.]

 

Nuno Rocha Morais


sexta-feira, 21 de maio de 2021

 


Dançaste e dançaste e dançaste

Como um perfume,

Como a sombra de uma brisa

Na fronde, magia

De uma cor ainda desconhecida,

O mais leve dos meses.

O meu pensamento fragmentou-se

Em ilhas intermitentes

E à deriva, mas creio

Talvez me encontres como um seixo

Depois de no coração

Te terem corrido muitos rios.

Partilharemos então os gomos

De sol que nos restarem.

 

Nuno Rocha Morais

sábado, 15 de maio de 2021

 


                                    Até casa, o caminho é uma serpente

                                    Que se alimenta da sua própria substância.

                                    Até lá, é preciso atravessar a fantasmagoria

                                    Dos bastiões e casamatas, fitando com olhos de coruja

                                    Os focos de luz azulada que lhes estão apontados;

                                    É preciso encontrar o espectro que acende o cigarro,

                                    Pigarreia, pede uma indicação e se desvanece,

                                    Os esqueletos de metal dos guindastes,

                                    Como mastodontes num museu de história natural;

                                    É preciso ver cruzar, na distância,

                                    As luzes penadas, desencarnadas, de um comboio,

                                    Ver as chispas torturadas que as suas rodas

                                    Arrancam aos carris;

                                    É preciso sentir a respiração ofegante,

                                    Moribunda, das árvores sob a primeira neve,

                                    Farejando o fim em curso, que as retomará,

                                    Mudado já em princípio iminente;

                                    É preciso ouvir o rumorejar da corrente,

                                    A água que se repete e repete na noite,

                                    Quando os rios da terra são também

                                    Os rios do céu; é preciso ouvir essa água,

                                    O sinal do regresso sem fundo falso,

                                    E então sei que estou em casa.

 

                                 Nuno Rocha Morais (Últimos Poemas)


terça-feira, 11 de maio de 2021

Estavas avisado:

Não tinham os filósofos enviado atempadamente

Os pesados abutres da sua sapiência,

Bem nutridos com o infortúnio

Ensinado a incontáveis gerações?

O teu futuro há muito tinha passado por eles,

Já era conhecido e resta-te agora isto,

O diálogo com a tua própria tristeza,

Que nada mais responde senão o que sentes.

A paixão deixou-te o quê da tua vida?

Tens exactamente as mesmas mãos,

Mas parece-te que menos dedos.

 

Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 6 de maio de 2021

As areias deixaram-se enlevar

Pelo vento, sob a promessa

De serem um país distante.

Acabarão talvez depositadas

Num fundo inerme de mar.

Tudo o que aí repousa

Vive ulcerado pela renúncia:

E apenas como exemplo de renúncia

Sobrevive: ossos, ouro, areia, canhões.

 

Nuno Rocha Morais


sábado, 1 de maio de 2021

 

Quando parti, a minha mãe não me deu, 

Como a mãe de d’Artagnan, esse unguento milagroso,

O bálsamo talvez levemente fétido,

Certamente inútil,

Produto de uma sabedoria

Que ganhou o ranço da ingenuidade.

Como d’Artagnan logo percebeu

Havia dores, feridas, que o bálsamo

Não podia compreender, muito menos mitigar.

O bálsamo que a minha mãe me deu

Vinha dentro de mim,

Esse que, em voz aflautada pela ironia,

Se designa por amor de mãe,

E a sua pureza muito podia

Contra os inúmeros Rocheforts do mundo.

 

Nuno Rocha Morais




Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...