segunda-feira, 27 de julho de 2020

Não falarás com a minha morte,
Nada terás para lhe sussurrar –
Pois como poderei estar morto
Se em ti murmura a minha falta,
Se uma saudade tua me chama,
Se em ti há um lugar
À minha procura?

Nuno Rocha Morais

domingo, 26 de julho de 2020






Como a chama ainda imersa
No coração de uma vela,
Aposento escuro (...),
A víbora de uma obrigação,
Uma lei ao rubro.

Nuno Rocha Morais (Fragmentos)

quarta-feira, 22 de julho de 2020

THE ENGLISH PATIENT (Quase sextina)

Algures por ali seria a gruta
Que, irónica, escondia os nadadores,
As figuras absurdas no deserto.
Quem pintara a miragem destes corpos
Soubera como de água é a febre
E por isso seria azul a pele.

Mas que génio pintou sobre tal pele
Alterosa, nas pedras de uma gruta,
Talvez demonizado pela febre,
Estes seres, pristinos nadadores?
Qual foi o mar sabido destes corpos?
Que ondas mascararam o deserto?

Pouco importa o que já foi o deserto:
Agora é um refúgio, como a pele,
Para o sereno encontro de dois corpos —
Ainda que a mulher morra na gruta —,
Vogando, da penumbra nadadores,
Sem outra luz que a sua própria febre.

É assim que então se azula a febre —
Marinha freme a graça do deserto —
E revivem azuis os nadadores,
Já não de quaisquer águas, mas de pele.
Só não conhece vozes esta gruta,
Tardaram e abjuraram os dois corpos.

Como veneno, o amor fala dos corpos
Que um casulo vão tecendo de febre,
É amor o respirar frio da gruta.
Não importa que a vida no deserto
Se despenhe ou se extinga sob a pele
E a escuridão apague os nadadores.

O sol calcina a pele do deserto,
Mas subsiste na gruta o sal dos corpos,
Nadadores mercê de tanta febre.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

sábado, 18 de julho de 2020

Não deportaram as paredes
Só porque não puderam.
Fizeram mal – as portas falam,
As paredes escutam,
Ouvem todos os crimes,
E já nenhum poder está a salvo.
Os telhados têm terrores nocturnos,
As sombras continuam
A ser arrebanhadas,
No esquecimento não cabe
Nem mais uma gota,
Todos os livros queimados
Enegrecem as paredes
Mas o musgo resiste,
Esconde cartas e instantâneos
Algures entre pedras
Mantém um diário.

 Nuno Rocha Morais

domingo, 12 de julho de 2020

                                           “Porém meu ódio é o melhor de mim”
                                                                  Carlos Drummond de Andrade

Não odiei ninguém, nem mesmo
Quando me enterraram vivo.
Não tem importância,
De nada me servia, embora me pertencesse
A minha vida.
Não perguntei nada,
Lá teriam as suas razões
Para me enterrarem vivo
Aqui, onde tocam telefones
Dia e noite, dia e noite,
Por onde passa gente
Sem nunca se deter,
Gente que nem sequer tem tempo
De ter rosto e expressão.
Tão-pouco protestei –
Para não incomodar –
Quando me enterraram vivo.
Esperei, paciente, e a paciência
Roeu-me os ossos.
Não tem importância.
Educadamente até me pediram desculpa
Por me enterrarem vivo.
Não os odiei, não me odiavam.
Se alguma vez odiássemos,
           Talvez fossemos pessoas melhores.

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 7 de julho de 2020

 
Castigo? Castigo
É já o tempo
Que nos abandona
E torna impenetrável,
Inacessível o esquecimento.

Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 1 de julho de 2020


Às dez da noite, procurei uma igreja aberta,
Não em busca do reino dos céus,
Mas para estar mais perto da terra.
Então, aí, à luz de círios,
Os contornos do silêncio tremulam
E a paixão é quase palpável
E goteja cristais destilados
No cálice do coração,
Por entre o movimento roçagante
Das figuras nos vitrais,
Que parecem abeirar-se,
Movidas por curiosidade.
As preces sussurram como trigais
E a dor é a figura maternal
Junto da cruz.
Mas, às dez da noite, não encontrei
Nenhuma igreja aberta,
Deus fechou-me todas as suas portas
E cerrou-me as suas mãos.
A sua ausência esplendia em pleno centro,
Rodeada pela escuridão atenta em anfiteatro.
Inexistindo mais alto,
Ateava-se a sua presença mais viva e mais forte.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...