segunda-feira, 29 de janeiro de 2024


Apenas isto:

Não sobrevivermos ao momento,

Como ele sermos desprendidos,

Leves e tanto

Que nem o tempo nos conheça vulto.

Apenas isto:

Não sermos nunca 

Sobreviventes da felicidade.

                                                        

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 23 de janeiro de 2024


Junto ao Sena, o vento

Rapta a nossa efemeridade.

É o vento de Paris que lhe dá rumo.

É outono e tudo começa

A não ser verdadeiro

Para o olhar que não mudou.

Mudam-se as roupagens,

Prepara-se outro amor e outra morte.

Em Paris, a morte não significa morrer –

Talvez um tempo que já tenha sido regresse.

É em Paris que encontro Beatrice,

Já não uma aristocrata florentina,

Mas a publicitária que me vende um perfume

E traja de azul e fala a cantar.

E o seu sorriso é um fragor em mim

E os lugares-comuns são esplendorosos

Para falar de Beatrice.

É perante ela que uma vida enflora

Para se fechar no mesmo momento,

Fim e principio sobrepostos, indistintos.

No circulo do vento com a minha alma

Está Beatrice e Beatrice,

Na minha alma, diz-me

Que aqui, em Paris, com ela,

A minha efemeridade pode durar

Um pouco mais.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos dias (2022)

domingo, 14 de janeiro de 2024

 Por cada minuto, agradecer-te,

Agradecer-te por teres atravessado,

Alheia a qualquer pavor

Esta paisagem de guernicas,

Esta paisagem onde outros caminhos,

Se mostravam e te acenavam,

Mas tu seguiste sempre, sempre,

Para onde lancinante era o não haver luz,

Seguiste tornando aves as nuvens já peso,

Tornando as aves já não figuras de fuga,

Mas sim gargalhadas tilintantes

E o céu, vasta leveza

E as guernicas, promessas de searas,

Fontes, filhos, frutos.

Chegaste e seguia-te uma paz,

Rutilante alento.


Nuno Rocha Morais

domingo, 7 de janeiro de 2024

 


O que se cala por bem vai perdendo

A inocência que se possa acomodar numa espécie de silêncio.

À sua sombra cresce –

Quase se poderia dizer que cresce

À sombra do invisível, do inaudível –

Mas cresce uma ameaça que ganha corpo e se adensa.

Tudo o que se calou apodrece,

Empesta e envenena, acidula e corrompe,

Em breve os seus vermes estarão por toda a parte.

O que calaste fala continuamente

Contigo, lateja em protesto incomodo.

Poderás morrer sobre o peso residual

De tudo o que não disseste.

Tantas palavras adormecidas por conveniência

Não dormem, têm uma gravidade pestífera

Que te abraça para o fundo.

De algum modo, passaram para o outro lado do espelho,

São uma presença que acompanha

A imagem da sua própria ausência

E os lábios movem-se em formas mudas,

Obstinada recusa do teu silêncio.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022)

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...