terça-feira, 27 de setembro de 2022

Questões de vocabulário

À minha paciência chamarás cobardia

E não tenho como te desmentir

Porque, então, o significado é um extremo –

Para além dele só o abismo.

E, assim, todas as palavras em mim

São indefensáveis, apenas me posso calar.

Mas, então, pelo silêncio, acuso

Ou escondo, ou falseio.

Na verdade, o meu silêncio é uma sucessão

De incisões, de histórias fossilizadas.

Não sei de ti, mas desaprendi a perguntar.

As perguntas sobem ou descem?

O céu é a suspensão de uma coisa,

A terra é a consequência ou vestígio de outra.

Paralelos, pacientes, cobardes,

Jamais se infringem, nada farão um pelo outro.

À mais perfeita indiferença ouvi

Chamarem amor. Talvez fosse.

Sentem algas e é amor.

Pontapés nas costas e é.

Acessos de tosse. Náuseas. E é sempre amor.

À minha paciência chamarás cobardia.

Ao amor, gaiola aberta.

Nada restará de mim nas tuas mãos ténues.

Não perdoarás a paciência,

Não me perdoarás que espere por ti.


Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Fútil

 

Hoje fui completo.

Fiz quanto já tinha feito,

Lavei olhares como louça quebrada,

Pisei corações, ordenhei a luz

Quando a luz pedia noite.

 

Desenterrei a terra

Quando a terra pedia descanso,

Quis frutos quando a semente morria,

Pontapeei o amor, caguei em seios,

Escaquei horas e vozes.

 Fui “merda douta”.

 

                    O dia agarrado a mim

                    Como cicatriz.

 

Nuno Rocha Morais

domingo, 18 de setembro de 2022



No jardim de sempre, então, fiquei a ouvir

O vento em árvores familiares,

O mesmo que ouvimos juntos

Quando na voz as palavras já estão apagadas.

É apenas ouvir o vento em árvores familiares

E eu sinto que a minha casa não me espera, mas se dissipou,

Tão pouco é o que levo de ti.

E talvez por isso hoje o vento me pareça tão carregado,

Como se arrastasse algo mais do que os sons que se libertam da folhagem;

E talvez por isso este jardim de sempre e o ouvir o vento,

Tão familiar em árvores familiares,

Sejam a minha casa, onde posso viver um momento, 

Um momento que me chega intacto.

E é uma casa onde sei que te amo o bastante

Para saber que não morreria por ti,

Mas enfrentaria um perigo maior: viver por ti. 


Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

 Fervo pensativamente –

A densidade de todas as palavras já escritas,

A corrente que respira, violenta:

É contra ela que remo,

Para encontrar esse leito

De página branca,

Onde todo o voo será meu,

Onde cada vez que a mão ousar,

Não estará a ser sorvida pelo lugar-comum

De uma ousadia (o)usada.

Atravesso todas essas vozes

Que encantam e me pedem que fique

E me sente à sua sombra

A ouvir as suas histórias.

Não posso, não posso:

Mais além é a desova da palavra,

Mais além, sempre mais acima,

Sempre mais fundo.

 

Em tudo o que já foi dito,

Há algo que ainda não foi dito.



Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Para começar sento-me num jardim

À procura de um regresso que não se acha –

Túneis e galerias,

Um pais perdido tão facilmente,

Mais leve do que o pó.

Uma tarde para experimentar por fim

A minha vida,

Aquela que julguei a minha pior inimiga,

A que me roubou tudo quanto amei

E pouco me deixou nas mãos –

Mas agora não vale a pena lutar contra ela

E sorrio-me do absurdo que é sabê-lo,

Talvez mais até do que combatê-la.

É com a minha vida que me sento,

Percebendo o seu relevo lacunar –

Alguém deverá ter dito desta fulguração última

Sobre a qual vai ganhando consistência

Um sono imprestável,

Que se converte em crosta e fundura

E assim se me revela:

De nada serve ou adianta que outrora –

Ontem, apenas – um nome tenha sido amor,

O nome que se vai desmantelando

No movimento vagaroso da tarde.

Seja como for, a conta estará certa.

Para acabar, sento-me num jardim.

Ao levantar-me, serei simplesmente o que começa. 


Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...