domingo, 28 de dezembro de 2014

Lá fora, o enredo violento
Da chuva e do vento,
Como sílabas furiosas
De uma história de amor.
Cá dentro, tilinta a substância
De copos e risos e uma alegria
Quase compulsiva,
Esta vontade de inventar estrelas,
Perguntam-me por ti,
Incessantemente, em revoadas,
Perguntam-me por ti, perguntam,
Perguntam e eu não sei
E apercebo-me do súbito silêncio
Dentro de mim
Numa noite de Natal.


              Nuno Rocha Morais


sábado, 27 de dezembro de 2014



Epitáfio

Não me procures
Já não tenho encalço,
Já não deixo rasto.
Encontras-me agora
Em toda a parte.






Nuno Rocha Morais

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Natal


Descendo da cruz, Cristo
Entregou-se a uma criança.




               Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Para todas as Mães, especialmente à do Céu, cuja protecção do Nuno está agora a seu cargo


Atravessei a sucessão de cavernas
E eram as conchas das suas mãos.
Não sabia que a escuridão
Denunciava o seu desvelo.
Ignorei o carpir das pedras,
Saí indemne para a luz
Ignorando que a sua alegria
Me recebia, radiosa;
Apenas sentia, obscuramente,
Que todos os perigos eram meus aliados,
Que todos os alarmes me eram fiéis;
Elas intercediam, secretas e fui hóspede
Das malas-artes da fadiga extrema
E o vinagre bastou para me matar a sede.
Eu sabia, de ciência cega,
Que a força das mães me erguia
Para o alto, para o humano,
Sem incomodar os anjos.



Nuno Rocha Morais 

domingo, 30 de novembro de 2014

Publicado no jornal "Notícias de Penafiel" (27/5/1994)

              Quem ler estes versos,
Gritos cerceados
Em negro silêncio;
Quem ler estes versos,
Voz em cativeiro,
Imolada em poema
Saiba o que há a fazer:
Quebrar os reflexos,
Conceber o espaço
De todos os versos
Em linhas de voo.
O poema só se evade
Se o leitor for liberdade.


Nuno Rocha Morais


domingo, 23 de novembro de 2014

Afinal, morre-se, mãe
E o teu ventre já não pode prometer nada.
Noite após noite, os olhos,
Os meus e os teus,
Apagam-se um pouco mais.
Afinal, morre-se sem um crime,
Pode-se morrer puramente,
Morre-se sempre, mãe.
Só o teu ventre não acredita nisso.
Eu queria morrer ao teu lado,
Porque, afinal, morre-se, mãe.
Morrer, ao teu lado, não teria significado algum;
Como morre alguém perante o lugar de nascer,
Perante a idade de que se emergiu?
Mas, afinal, morre-se
E morrer é estar de novo ao teu lado,
Mais – envolvido no teu ventre
Que afasta o tempo e a morte
De quem se prepara para nascer.




Nuno Rocha Morais

sábado, 22 de novembro de 2014

A mãe é também esse lugar de neve
E só aí a fadiga nos sobe às feições
E a exaustão se espalha pelo corpo
Que ainda, como sempre, não conhece.
Não é preciso que a mãe diga coisa alguma:
A mãe está, está no estar do fogo
Que irrompe exactamente no centro do frio,
Ainda que a mãe seja esse lugar de neve,
Onde podemos estar cansados.
A mãe é a encruzilhada de onde não partem caminhos,
Mas apenas onde todos chegam.

A mãe é a única chave de casa.

                                                   Nuno Rocha Morais


sábado, 8 de novembro de 2014

(Ao Dr. Alfredo de Sousa)



A mão que convoca e reúne:
A grafia real, o poema escrito;
E, no entanto, é como se na página,
Sobre o poema já completo,
Se sentisse ainda a busca sedenta



                                                                                            Nuno Rocha Morais






quinta-feira, 6 de novembro de 2014

"O Poder" (Publicado na revista "Incubo")


O poder

Estás comigo
E o meu passado está em paz,
Diluído.
Sinto-te, estás aqui,
Estás na minha margem do silêncio,
É minha toda a tua presença.
Um poder –
Poderosamente.

Disseste-me, então,
Que levarias tudo,
As areias do corpo,
A doçura espessa de alguns gestos,
Tudo: os oásis da música,
Os rastos do sussurro,
Os verbos termos em que adormecíamos.
Deixas, porém, as noites violentas,
O deserto da casa,
A tua presença.

Que passa no silêncio das coisas.



Nuno Rocha Morais 

domingo, 2 de novembro de 2014

(Inédito)

A minha dor nada importa,
Tornada já rotina,
Mas que sobre mim caia
Toda a guerra, todo o tormento,
Que de mim nunca transbordem,
Que em ti toda a terra
Ecoe em paz.

E à minha dor
O teu não a sentir
Trar-me-á alegria bastante.



Nuno Rocha Morais



sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Transição


Restará apenas escrever
A epopeia das galinhas brancas,
De como regressaram,
Vagamente ridículas,
Ao seu ovo no poente.
Talvez se julgassem eleitas.
Com um estrondo de pórtico,
Já cai de bronze, ao som do gongo,
O ponto final, presente de grego.
Restará apenas esburgar
Quanto foram de mofineza
Ou salvação
E se houve algo mais
Do que um estúpido estourar
De gente estúpida:
A fartar, vilanagem.
Por certo contarão as suas traições,
Entre o remorso e a vanglória
Enquanto miram, suspirosas,

O império empalhado a um canto da sala.



Nuno Rocha Morais




domingo, 19 de outubro de 2014

Verás os desvelos do silêncio
Sobre a dor que choras:
Quando partires para o longe exótico
Dos países de adormecer,
O silêncio há-de esquecer por ti tudo,
Todo o horror, toda a dor.



Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 13 de outubro de 2014



Pela poesia hei-de,
Não calar-me,
Mas dizer tudo por alheios lábios.
Direi tudo
E tudo me será perdoado,
Porque, embora seja culpado

Não sou o gesto de o ser.

                  Nuno Rocha Morais

domingo, 12 de outubro de 2014

Pressa


Com que pressa comecei então
A sair de toda a parte,
A extinguir, um por um,
Todos os meus amigos.
Agora, não tenho ninguém
Senão os meus mortos,
Que me trazem a sua lenta solidão.
Toda a memória se satura
Com imagens tuas –
O modo veloz como viravas costas –
E sucumbe ainda à tua pressa abrasiva
Que calcinou todos os nossos segredos.
Mas já não há pressa:
Qualquer tempo, todo o tempo,
É inútil recuperar

A vida que perdemos.





                                                Nuno Rocha Morais

Publicado nos Cadernos de Serrúbia - dezembro 1997

Nascituro: Uma genealogia

                                    “Meu pai, o açor.
                                      O avô, lobo.”

                                            J. Bobrowski

Do avô herdarei a sombra do lobo.
Do pai o altíssimo silêncio de águia.
Confio-me ao vosso sangue, nosso,
A próxima maré.

Nuno Rocha Morais








sábado, 11 de outubro de 2014

Poema publicado nos "Cadernos de Serrúbia" - Fundação Eugénio de Andrade

Uma criança continua a seguir-te,
Ainda não te perdeste dela.
Às vezes, pensas que se afogou na idade, 
Mas ela volta, primavera maldita, 
É uma ferida recidiva aberta,
Uma fertilidade dolorosa
No seio da terra putrescente,
Fatigada, quase extinta.
Ela volta, insónia ou incêndio,
Atira-te de longe o teu nome
Na alcunha mais malévola,
Onde a tua imagem é insuportável,
Atira-te o teu nome
Como uma pedrada.
E dói. E ela atira outra e mais outra:
Saem-te pelos olhos estilhaçados.
Não lhes chames lágrimas – não são:
São pedras, de uma outra dor.
Sabes que envelheceste porque ela volta mais vezes.
A criança nunca fala. Só atira pedras.
Outros lhe chamem o que quiserem –
Para ti, são pedras.



Nuno Rocha Morais

terça-feira, 30 de setembro de 2014

E em cada poema, As mesmas palavras

E em cada poema,
As mesmas palavras


Eis que cada poema sai
De outro e diferente vazio
Outros felinos e ígneos olhos
Abre na sombra,
Outra sempre também a luz
Em que cada poema se entroniza.

E em cada poema, as mesmas palavras
Nascem sempre de outros sentidos,
Chegam sempre por outras áleas
Por inimagináveis rectaguardas,
Por ignoradas entradas.
Eis que cada poema brota sempre
De um novo e outro vazio,
Como se do centro de pensar

De um sempre outro poeta.





Nuno Rocha Morais




quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Tenho a pedra da treva pelo meu lado.
Do poeta sou somente o gesto abstracto
A que a palavra só concede o tacto
Do plano dizer, não mais. Sou poeta vendado.

E apenas cantarei o que é exacto,
A superfície fácil do olhado
Que sai do canto vão, vitrificado,
Deixando ao poema só mera forma do facto.


Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Senhor, é já algo que transborda,
Eflúvio de sal ou dor
Que rouba aos gestos a cor
E apaga a corda do riso.

Senhor, eu sou tormenta,
Mas também sou barco.
Neste que luta, naquela que rebenta,
Em qual, Senhor, posso ser fraco?


Nuno Rocha Morais

                                     Ilustração de Rasa Sakalaite

segunda-feira, 22 de setembro de 2014


A morte nada dura
É tempo de despir o luto
Antes que comece a confundir-se com a pele
Oh! A morte nada dura
De novo há pássaros que submergem
O lento remar dos adágios
O grave requiem dos prantos
A morte nada dura
Os mortos voltam nos vivos
Aos vivos



Nuno Rocha Morais

domingo, 21 de setembro de 2014

Tradição

Com dedos antiquíssimos,
Deixaram-se raízes
No barro, na madeira –
Vigília da voz nas formas
E na matéria.
Provérbios de água,
Quadras de terra,
A geografia do ser
Português.
       Nuno Rocha Morais

                   
Eu sou daqui
E não sei senão ser daqui,
Como os rios que em oceanos se fundem
E nunca esquecem o seu rosto inicial:
Leve, quase alado suspiro de água
Entre inominadas rochas.
Os rios retomam sempre
Essa sua infância.

Eu sou daqui
E não sei senão ser daqui,
Mas tu não entendes
O peso que é, às vezes, ser daqui:
Tu és filha de cosmopolita néon,
És eco de outros rios.
Portanto, não podes entender
O peso que é, tantas vezes,
O ser português.



Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...