domingo, 28 de junho de 2015

Há já algum tempo que não brinco a ser criança,
Há já algum tempo que não sou sincero,
Que baralho verdades e mentiras num único nó.
Há já algum tempo que faço jogos de sombra
Com virtudes e vícios,
Há já algum tempo que me impingem hierarquias.
Já me dizem que é tempo de eu cortar
A casa numa família,
Ancorar na esposa, nos filhos, na carripana, no emprego,
Tempo de deitar cedo,
Acabar com as escritas,
Deixar as folhas devastadas de branco,
Deixar que o papel sonhe calado,
Que também eu não sonhe:
Em vez de sonhar, devo votar.
É uma vida que me propõem,
É ser gente que me propõem,
E eu não posso fugir, como fugir de ser gente?
A vida já me vai recortando uma memória
Já me morre como se me pertencesse.

Nuno Rocha Morais



È già da tempo che non gioco a esser bambino,
È già da tempo che non sono sincero,
Che confondo verità e menzogne in un unico nodo.
È già da tempo che faccio giochi d’ombra
Con virtù e vizi,
È già da tempo che mi impongono gerarchie.
Già mi dicono che è tempo che mi decida
A metter su famiglia,
Mi attacchi alla sposa, ai figli, al catorcio, al lavoro,
Tempo d’alzarsi presto,
Smetterla di scrivere,
Lasciare i fogli devastati di bianco,
Lasciare che la carta sogni in silenzio,
Che neppure io sogni:
Invece di sognare, devo votare.
È una vita che mi propongono,
È d’essere uomo che mi propongono,
E io non posso sfuggire, come sfuggire dall’esser uomo?
La vita già mi sta amputando una memoria
Già mi muore come se m’appartenesse.



Tradução de Manuela Colombo, Novara (Itália)

                      



Sotaque



As vogais sem cantos, sem sombras,
Arredondam-se e alongam-se:
É nelas que estou em casa.

Mas, por favor, nada de pátrias.




Nuno Rocha Morais

domingo, 21 de junho de 2015


"J’ai plus de souvenirs qui si j’avais mille ans."
Ch. Baudelaire

Acontece, às vezes, que sou demasiado velho.
Caudaloso, transbordo das margens,
Sinto-me maior que a ciência do tempo
E nada há que eu não tenha feito
E não há espesso cansaço que eu não conheça.
Tudo parece repetir-se
No fluxo de um ciclo conhecido e fechado,
Tudo possui um eco dentro da minha idade.
Já não me espanto somando as ruas
E as gentes com as estações.
O timbre da lágrima ou do riso sobre a página
Despertam o verso mais citado,
O verso que, de tão famoso, é já silêncio.
Venci a densa questão e o medo e a maravilha.
Acontece, às vezes, que sou demasiado velho,
Que em mim a vida mata por ser infinita.


Nuno Rocha Morais 

sábado, 13 de junho de 2015

ADAMASTOR


Nos longos corredores da História
Há memórias plúmbeas de medo,
Mas cujo rosto não é o de Adamastor.

Adamastor é apenas o riso
De uma vontade virgem, inerte,
Inutilizada, que troça
Do nosso medo e mutismo.

                       
        Nuno Rocha Morais


quarta-feira, 10 de junho de 2015

CAMÕES



De ti, muito pouco sabemos
Que não seja verso:
O amor que, dócil, se estendia
Como praia matinal,
A vida traída nos declives
Dos enganos e — pior — dos desenganos,
O ser português que era algo
De não caber no peito,
Mas só no mundo.
Até os teus versos, onde os homens
Se tornaram deuses dos deuses,
Não soam humanos,
Incriados, alheios à pequenez da pena,
Envoltos no amplo silêncio de cantar,
Como ninfa da luz recém-nascida,
Nas tuas palavras se erige uma língua,
As suas novas dores e sortilégios e silêncios.
Tão somente isto de ti sabemos:
Alma de terra e oceano.


Nuno Rocha Morais

Ser português nunca foi fácil
Porque a língua foi sempre difícil –
Os seus litorais não se entregaram
Em enseadas e verdura
À nossa dor, ao nosso cansaço;
Nunca as suas sílabas carregaram,
Dóceis, brandas, claras,
O nosso silêncio, o nosso amor.
Não, ser português nunca foi fácil,
Não quando a língua tem de ser rasgada
E é uma ferida que se abre em nós.
Não, nunca o ser português foi fácil,
Nem sequer nas palavras,
Nem sequer no silêncio
E é difícil dizer-te porquê.


Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 8 de junho de 2015

O PRÍNCIPE FELIZ



Pelo vagaroso céu, o Inverno sobe,
Convoca todos para a câmara de um envelhecimento.
O Sol resume-se ao rubi do punho da espada do Príncipe Feliz
E o diurno céu regressou às safiras dos seus olhos.
O ouro do dia já não cobre o Príncipe
E, aos seus pés, uma andorinha,
Alígera felicidade,
Instinto que o amor deteve.
O Inverno avança, o ouro dos dias
Caiu nos fogos das casas,
O Príncipe empobreceu,
A andorinha morreu,
Devassada, consumida.
E só agora, dirimido na sua beleza,
Mero coração de chumbo,
Irrigado por todo o amor da andorinha,
O Príncipe é verdadeiramente feliz.



Nuno Rocha Morais

domingo, 7 de junho de 2015







Canta, traz-me a serenidade
De uma qualquer serenata,
Um som qualquer, assobio,
Motor, dor que se esgueira
Por entre os lábios da contenção,
Algo que faça recuar estas paredes,
Canta ou conta fábulas,
Abre portas rangentes de mistério
E antiguidade nas lendas,
Canta ou rememora,
Que o brilho de uma evocação
Ocupe algum som,
Canta ou fala ou grita até,
Para que em mim a maré
De uma paz imensa desça,
A paz de um sonho de silêncio.


Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...