domingo, 30 de outubro de 2016




Se, ao entrarmos numa casa,
Temos a impressão de voltar ao passado
E cometemos o abusivo atalho
De pensar no passado como uma casa
Que poderá eventualmente ser nossa,
Então, estaremos condenados a viver
Em meras cicatrizes de casas,
Linhas enegrecidas onde só a custo
Se adivinham paredes e tecto nenhum,
Só talvez uma porta fora dos gonzos,
O fóssil de uma entrada sem saída
Que bate sob o assalto violento
De uma decepção curiosa,

A única presença que talvez não seja intrusão.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 17 de outubro de 2016


















Que a tua memória seja longa,
Embora, por vezes, a fites incrédulo,
E não te reconheças em nenhum
Dos outros que foste e em ti apagaste.
Memória longa para saberes
Onde se encontram perdidas as coisas,
As pessoas, os lugares,
E então talvez as causas aceitem revelar-se,
Personagens na sombra que abandonam o disfarce
Porque nada mais pode a memória
Senão murmurar-te que viver
É desencontrar.
Que seja longa e labiríntica:
O fogo sem chamas reminiscente
O que te espera é isso,

Uma longa conversa com a memória.

        Nuno Rocha Morais

domingo, 9 de outubro de 2016


Às vezes, marco encontro com ele –
Para jantar, para ir ao cinema,
Mas, depois, é o silêncio estéril
De quem não tem nada para dizer.
Prefiro não me fazer confidências,
Não me fazer perguntas
Porque não sei as respostas –
Ou então conheço-as bem de mais.
Evito dizer “eu” porque há sempre alguém
Em mim que se insurge, excluído.
E é longa a inimizade que nos une.
Chego a casa e lá estará,
À minha espera, com uma recriminação:
Censura-me porque está só,
Censura-me porque ama.


                                           Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Gens litterarum

São amigos dos poetas,
Os poetas são o seu ganha-pão.
Amassam, cortam, dissecam versos,
São abelhas obreiras azafamadas.
Calceteiros e sinaleiros:
Encontram nos versos o sentido único,
As proibições de voltar à esquerda ou à direita.
Podam a volatilidade do verso,
Impedem que a palavra se perca
Em busca da palavra mais justa.
Cimentam o verso,
Plantam neles lindos canteiros
E sentam-se, bucólicos, embevecidos,
À espera do musgo.

 Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...