Paula
Manhã, manhãzinha vem pela estrada, vermelha, sorridente, cantarolando.
Chega com a manhã.
Na aldeia, ninguém sabe de onde veio a Paula, não se lhe conhece família,
marido, pais, filhos, ninguém. Existe por si. Desde sempre: ninguém a criou. Ou
é criada todos os dias, nasce com a manhã.
Da Paula só se sabe que é louca. Assim dizem os sãos. E ela quer ser
louca. Procura a loucura no vinho. A loucura, dizem, nasce do encontro entre o
vinho e o sangue da Paula. Passa algumas horas por dia na taberna. Os homens
acham-lhe graça. Pagam-lhe copos, dão-lhe garrafões. Sabem que embriagada a
Paula tira a roupa. Riem-se e, depois, pia, catolicamente, dizem “Pobre alma”.
E a Paula ri-se com eles, como se longe de si mesma.
Mora no meio do monte, num lugar a que chamam “O Buraco”, uma velha casa
meio arruinada, abandonada até pela memória, pelas sombras do passado.
A Paula repovoou um pequeno quarto: um retrato do Papa, um colchão, os
garrafões, os gatos que ela ama, a sua loucura. A Paula chama-lhe agora o Solar
do Inca. Fala dos diamantes que só ela conhece. Fala da gente que a visita.
“Hoje, tenho visitas”.aperalta-se nos seus trapos, depois de se ter lavado na
fonte, nua, com as beatas puríssimas a rosnarem entre dentes – “Porca”. A Paula
não liga. Faz a sua vida a que ninguém chama vida. Só miséria. Mas ela, louca,
parece feliz. Longe de todos. Só perto dos seus sonhos, da sua imaginação, da
sua loucura, dos seus gatos. A Paula é feliz.
Mal a manhã acende o tempo, a Paula desce a estrada. Cantarola com o
chilrear infernal da passarada, o cantar dos galos, um boi que muge. A Paula
começa a ser o tempo. Quando a vêem na estrada, sabem que é a hora x. Certa, a
Paula faz o seu caminho para lado algum, azafamada a procurar Áfricas, ouros e
ir a festas.
Mas uma manhã, a Paula não desceu a estrada. E três dias passaram. Às
gentes da aldeia, a manhã parecia incompleta, faltava-lhes alguma coisa. Alguns
homens e mulheres foram ao Buraco. A Paula estava lá, no colchão, entre os seus
gatos. Lábios adormecidos em pedra. Lá longe, alguém cantarolava.
Nuno Rocha Morais