terça-feira, 26 de abril de 2016

Poema terrível


Viu tudo em Hiroshima.
Viu tudo em Chernobyl.
Estes nomes edificados sobre a morte:
A súbita síntese da luz,
O sopro irresistível,
A redução de tudo à sombra
A redução de tudo à terra.
Viu tudo nas ilhas do Pacífico,
No pacifico horizonte
Onde a morte se ensaiava
Na erecção vegetal e letal.
Viu tudo e tudo lhe cavou o olhar,
Descobriu que nascer talvez já não seja
O momento em que o homem reconhece a sua vida.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 25 de abril de 2016


É possível que o homem caiba
Entre o céu e a terra sem se rasgar.
É possível que o homem caiba
Entre outros homens.
É possível que o homem adormeça
Com lobos de fogo à cabeceira.
É possível que toda a verdade da boca
Caiba no beijo sobre a pele.
É possível que o homem viva
Dentro de si próprio,
Sem outra cor que não seja a cor de ser homem,
Em que a fonte do homem
É apenas o homem:
À superfície do homem
A pura transparência animal.

Nuno Rocha Morais

domingo, 17 de abril de 2016

COMUNICAÇÃO



A mãe que crucifica o filho
Com dois bofetões
E a publicidade
E as discussões familiares
E um par de namorados felizes
E uma vizinha submersa em luto
E um homem que quase chora
E tanta gente na mesma paragem de autocarro
Para caminhos e intenções tão diversas
E alguém que esquece que alguém morre –
Vida e motivos obscuros.

Nuno Rocha Morais

domingo, 10 de abril de 2016

MODELOS



Ri, sorri, prova, usa,
Corre, salta, dança,
Tira, põe, despe,
Sobretudo despe,
Expondo castamente
A nudez comercial.
Aprenderam a graça das nuvens,
Não têm direito
À treva da tristeza,
Aos problemas íntimos e caseiros:
São perseguidas por salas em festa,
Por fotografias, amores infelizes,
São perseguidas pela luz
Que, inexorável, as corrompe
E envelhece, como afinal, a todos.
A luz que as recebeu,
A luz que elas apuraram
É a mesma luz que as vence,
Água sobre papel.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...